Fomos a Lisboa para descobrir o que significa uma “Vida Justa”

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Fotografias por Francisco Melim

Se têm seguido as notícias nos últimos tempos, então devem saber que os preços de tudo e mais alguma coisa aumentam todas as semanas, que a falta de habitação nas cidades é grave ou que os salários continuam a pesar leve na carteira da maioria enquanto as grandes empresas de energia e retalho etc. somam e seguem nos lucros recorde. Não há como escondê-lo, o cenário não é bonito e sobram histórias de gente que faz os possíveis e impossíveis para aguentar com o mínimo de dignidade mais um período de incerteza e ansiedade social e económica.

A boa notícia é que as pessoas parecem estar a soltar-se da apatia, a perceber que há lutas que não se fazem sozinhas e que se é para desmantelar as coisas como elas são, então este é o momento de sair à rua e reclamar com voz grossa por políticas que façam a diferença no dia-a-dia da maioria. Foi o que aconteceu em Lisboa no sábado à tarde na manifestação “Vida Justa” .

O interessante desta mobilização é que ela partiu daqueles que, na verdade, mais estão habituados a contribuir activamente para muitas das comunidades mais destratadas pelo sistema. Falo de uma série de movimentos e associações populares que operam nos bairros periféricos de Lisboa, territórios onde se concentra boa parte das camadas mais desprivilegiadas da nossa sociedade. É certo como o sol nascer que quando há um abalo nas matemáticas financeiras do país, este sente-se com mais força no seio destas comunidades, constituídas sobretudo por trabalhadores das actividades mais invisíveis e desvalorizadas da sociedade – as mesmas que tornam possível a cidade mover-se todos os dias e que, se se recordam, nem a pandemia confinou.

A periferia foi assim ao centro reclamar não só por respostas urgentes aos problemas que são comuns à maioria – como o controlo de preços dos bens essenciais, habitação para todos ou salários para viver, e não apenas sobreviver -, mas também por um lugar à mesa do poder que seja representativo das populações mais vulneráveis. Causas que tocam a todos e não apenas à periferia e que por isso encorajaram muitos milhares de lisboetas (e não só) a descer ao Marquês de Pombal para fazer ouvir as suas reivindicações.

A manifestação durou cerca de três horas e terminou em frente à Assembleia da República. Com o meu mano da fotografia, o Kiko Melim, segui a marcha pelas ruas da capital e fui ouvindo o que as pessoas têm para dizer sobre estes tempos e o que para elas significa uma vida justa. Seguimos então com umas imagens e uns testemunhos…

Alexander Kpatue Kweh

Ainda a manif estava no início quando encontrei o Alexander Kpatue Kweh ao lado de um pequeno grupo de refugiados. Dos cartazes que agitavam no ar, havia os que mencionavam que os refugiados não querem mais do que aquilo que qualquer português deseja, o que para muita gente ainda parece não ser assim tão óbvio. Os refugiados juntaram-se à marcha para reivindicar, acima de tudo, melhores condições de integração para aqueles que arriscaram a vida na expectativa de encontrar um porto seguro para a família. Alexander – que faz parte da União de Refugiados de Portugal – disse isto:

“Eu estou aqui a representar os refugiados em Portugal. Se a sociedade civil que apoia os refugiados está a sentir esta crise, então os refugiados estão a sentir duas vezes mais. Os refugiados não são integrados no seu país de acolhimento. Têm muitas dificuldades todos os dias, então é bom que também juntem a sua voz a esta manifestação. Eu sou natural da Libéria, estou em Portugal há mais de 15 anos, e enquanto refugiado, no meu tempo, as coisas não eram assim. Os refugiados que hoje chegam aqui estão a enfrentar muitas dificuldades. O governo tem um plano específico para os refugiados, mas que não tem sido aplicado. Portugal é um país de acolhimento, não posso negar esse facto, mas não tem muitos recursos para integrar as pessoas. Estamos a salvar vidas, mas não estamos a construir vidas. São cada vez mais os refugiados a precisar de ajuda e eu não posso deixar os outros ficar para trás. Uma vida justa é ter acesso a todas as coisas que uma sociedade pode oferecer. Não é [ver] os empresários e os que mais têm dinheiro a beneficiar dos mais pobres. Não é uma vida justa uma casa custar mais que o salário mínimo, ir ao supermercado com o pouco que recebes do trabalho e ser tudo muito caro. O que antigamente se comprava para uma família, hoje não dá para uma pessoa. São milhares as famílias portuguesas que sentem isso e por isto estão cá a uma só voz.”

Lucrecia Quaresma

Lucrecia Quaresma, 52 anos, empregada de limpeza, sorriso fácil, foi à manifestação para falar de amor…

“Amor ao próximo é isto que estamos a fazer agora. Estamos a lutar por aquelas pessoas que não têm casa. Há quem esteja aqui e tenha boas condições, mas está aqui neste momento por amor ao próximo. Se calhar tem um amigo, uma amiga, que está na rua ou que não tem condições de viver ou a quem falta muitas coisas. Isso é que é amor ao próximo. Eu luto por alguém, seja quem for, sem distinções de nada. Temos de lutar por essas pessoas e conseguir algo para as ajudarmos. Eu tenho uma casa, tenho onde estar, as mínimas condições para viver, mas estou cá hoje por amor ao próximo. Tenho filhos, primos, sobrinhos, muita família, muitos amigos e se calhar estão a precisar. Amor ao próximo é o que tem faltado. Uma vida justa é que todos possamos viver na igualdade. Não é a questão de uns terem e outros não terem. Eu hoje posso ter pequeno-almoço, almoço e jantar como deve ser, mas outros estão a passar fome. E eu posso partilhar aqui a visão de uma vida justa para essas pessoas também.”

Francisco Martins

O cartaz do Francisco Martins era uma espécie de talão com as despesas versus o salário que leva para casa todos os meses. Francisco tem 36 anos e é um “homem do mar” – pescador, marinheiro, surfista – da Costa da Caparica. O cartaz convida a fazermos as contas. Fiz a matemática. Dava quase €400 negativos. Perguntei-lhe como é que se gere a vida com estes números. Ele disse: “mano, é assim, isto é o que eles nos pagam e são os preços que temos no nosso país. Felizmente vivo com a minha namorada. Se não fosse isso, como vês aqui, não dava. Este é o meu número, o meu valor, sozinho.”

Perguntei-lhe o que significa uma vida justa: “é eu poder viver no meu país, compreendes? Não é andar a contar os trocos todos os meses. É ter uma vida digna e conseguir ser feliz no meu país.”

Joabe Cabral

Ainda antes da manifestação, vi nas redes sociais a imagem de um cartaz onde se lia

“JOVENS DOS BAIRROS ESQUECIDOS!
QUEREMOS UM CAMPO
UMA ESCOLA EM CONDIÇÕES
UM FUTURO
ASS: RAFA IURI KURA MINITO”

e honestamente não esqueci aquele cartaz por causa do “QUEREMOS UM CAMPO” porque imaginei que fosse um campo para jogar à bola com os amigos e isso tem tudo que ver com uma vida justa e melhor. Lembrei-me de quando era miúdo e também jogava à bola no ringue ao lado de casa, de como o pessoal se reunia, formava equipas e esquecia as horas num roda-bota-fora que durava até anoitecer. E toda a gente se conhecia e os vizinhos também nos conheciam. Quem é que não gosta de ter um campo para jogar à bola quando é miúdo? “QUEREMOS UM CAMPO” no bairro só podia ser uma das ambições de que também é feita uma vida justa. Fui então à procura daquele cartaz e encontrei-o nas mãos de um rapaz simpático com cabelo prateado chamado Joabe Cabral – ou Minito -, de 14 anos, que foi à manifestação com a Geração Com Futuro, a associação de moradores do Bairro da Picheleira, nas Olaias…

O que significa “QUEREMOS UM CAMPO”? Conta-me tudo sobre esse campo…

Joabe Cabral: No bairro onde moramos não há um campo para jogarmos à bola, temos de andar até muito longe para jogarmos à bola. Por isso é que estamos a pedir um campo.

Então e como é que fazem para jogar à bola?

Joabe Cabral: Nós vamos jogar para um campo muito longe, temos de andar imenso para jogar à bola. Às vezes temos de apanhar um autocarro e quando voltamos para casa vamos a pé, levamos uma meia-hora ou quarenta minutos.

Um campo ali no bairro mudava tudo para vocês no dia-a-dia…

Joabe Cabral: Fazia muita diferença ter um campo no bairro porque gostamos mesmo de jogar à bola. Às vezes temos de jogar na rua, só que podemos partir um carro sem querer, é por isso que estamos aqui a fazer isto. E somos muitos, somos mais de vinte. Eu e os meus amigos gostamos muito de jogar à bola, gostávamos de ser jogadores de futebol.

Se a manifestação “Vida Justa” serviu para medir a temperatura do povo no momento de sair de casa para reivindicar uma outra experiência para os seus dias – mais digna e equitativa -, a expectativa é que sejam muitos mais a aderir à uma próxima convocatória. Podem apontar: 1 de Abril. Em Lisboa, no Porto e onde mais houver quem tenha o que dizer por uma sociedade mais justa.