Welcome to Brexitland: receios e expectativas dos portugueses num Reino Unido fora da UE

Fotografias por Ricardo

O mood por estes dias no Reino Unido é de incerteza. À pandemia que tem arrasado o território (regista o maior número de mortes por Covid-19 na Europa) junta-se agora a sua saída oficial da União Europeia depois de quatro anos e meio de negociações que foram seladas em cima do joelho. Assim se explica que a passagem de ano e a inauguração da nova fronteira britânica tenham sido discretas. O fim do período de transição do Brexit passou despercebido, com poucas manifestações de entusiasmo. Hoje é o dia zero da nova realidade social e política do Reino Unido, com os seus efeitos práticos a manifestarem-se de agora em diante no dia-a-dia das pessoas. É também a partir deste momento que, no interior das fronteiras do reino, se colocará à prova a percepção abstracta do exceptionalismo britânico – a ideia de que sozinhos voltarão a ser uma potência mundial – que conduziu a este desfecho.

A perspectiva de um Reino Unido fora da comunidade europeia arrastou-se no tempo desde 1975, quando se deu o primeiro referendo à presença do território na então Comunidade Europeia. Quarenta anos mais tarde, esse sentimento de autodeterminação face à Europa acabou explorado por figuras políticas que ocuparam a fractura social deixada em aberto por décadas de austeridade, deterioração dos direitos laborais e negligência do interior – o countryside. Apesar de tudo, e depois de uma campanha pelo leave marcada pela manipulação informativa, há uma resignação comum, principalmente entre os que votaram a favor da saída, de que as promessas do Brexit ficarão por concretizar. Resta descobrir que relação terão os britânicos com os europeus que por cá vivem e o que está reservado para o futuro dos habitantes do Reino Unido.

Foi precisamente para tentar desvendar que reino será o britânico a partir de hoje que durante o mês de Dezembro fui ao encontro dos portugueses residentes em Londres, cidade que votou fortemente a favor da permanência na união. O intuito era escutar e perceber como as suas vidas mudaram desde o referendo de 23 de Junho de 2016 e propor um exercício de prognóstico sobre o que o futuro pós-Brexit tem guardado na manga. O que se segue é um conjunto de reflexões de pessoas nos seus 20 e 30 anos, com backgrounds distintos e diferentes motivações que os levaram a rumar ao Reino Unido – antes e depois do referendo. Se por aqui vão permanecer, só o tempo o dirá.

NÁDIA MENDES, 35 ANOS, EMPRESÁRIA NA ÁREA DA RESTAURAÇÃO
NO REINO UNIDO DESDE JANEIRO DE 2004

“Quando soube do resultado do referendo, a primeira coisa que pensei foi, ‘ai, no que nos fomos meter’. Nós tínhamos acabado de fazer a escritura do café e já não podíamos voltar atrás. Nunca imaginámos que a saída da União Europeia iria ganhar. Sentimos um medo imediato. Vivemos cá há 17 anos e sabemos que haverá uma diferença enorme na vida neste país.

Sinto que a vida vai ser mais complicada a todos os níveis. Nós já tivemos vários aumentos de preços nos últimos anos e agora vai voltar a acontecer. Se já era caro viver em Londres, então agora será ainda pior. E, claro, a tudo isto junta-se a pandemia, que vai agravar muito não só a situação económica, mas também psicológica das pessoas que já estão a sofrer com tudo o que está a acontecer. Creio que haverá muita pobreza.

O nosso negócio é um café italiano, muitos dos produtos vêm de Itália e Portugal, então já estamos à espera de ver os preços aumentar. Entretanto, já tivemos fornecedores que, por causa do Brexit e da pandemia, deixaram de exportar para o Reino Unido. Um desses fornecedores trazia-nos queijos regionais italianos, por exemplo. Já fomos à procura de alternativas, mas nesta altura ainda não sabemos bem o que vai acontecer. Até porque os nossos fornecedores ainda não nos comunicaram possíveis aumentos porque esta situação não é clara para ninguém.

Na altura do referendo, nós conseguíamos perceber entre os clientes quem era a favor ou contra a saída do Reino Unido da União Europeia. Muitos dos que a estavam favor, não percebiam como estavam a votar contra os pequenos negócios espanhóis, franceses ou italianos onde eram habitualmente clientes. Por outro lado, também encontrámos muitos britânicos que demonstraram vergonha pelo que se está a passar.

Enquanto cidadã europeia no Reino Unido com o settled status regularizado, não sinto que os meus direitos estão protegidos. A qualquer momento as regras podem mudar e não temos vantagem nenhuma com o que se está a passar. A nossa garantia é saber que podemos sempre mudar para outro país europeu ou regressar a Portugal.

Nós conseguimos obter o settled status, mas o primeiro pedido foi rejeitado. Isso deixou-nos muito revoltados. Vivemos cá há 17 anos, este é o único país onde descontei na minha vida, tenho casa própria e filha com passaporte inglês, mas eles alegaram que não tinham no sistema provas suficientes de que nos encontrávamos a trabalhar no país. Tivemos de enviar imensos documentos a comprovar a nossa residência e situação profissional e só mais tarde é que o pedido foi aceite.

Já estivemos mais longe de regressar à Madeira, de onde viemos. Esta questão do Brexit fez-nos a ponderar ficar cá apenas enquanto for possível. Quando não valer a pena, então é a altura certa para seguir em frente noutro lado. O pensamento existe, só não sabemos quando se irá concretizar.”

BRUNO MANUEL, 24 ANOS, RESPONSÁVEL DE OPERAÇÕES
NO REINO UNIDO DESDE JUNHO DE 2009

“Eu tinha 13 anos quando me mudei para Londres. Na altura, Portugal não estava bem economicamente e eu vinha da Serra das Minas [concelho de Sintra], que também tinha os seus problemas. O meu pai já cá estava, então o melhor foi mudar-me para ter uma boa educação. Quando entrei na escola, senti-me bem-vindo, gostei imenso. Por cá completei o college e a universidade.

Sempre vivi em Londres. É uma cidade multicultural com todo o tipo de nacionalidades, culturas e religiões. Sempre houve uma união entre as pessoas, sempre se deram todos bem. Do que me contam, a cultura de Londres também é completamente diferente do resto do país. Então costumo dizer que não sinto que faço parte da cultura britânica, mas sim da cultura londrina.

No entanto, com o Brexit, noto que há mais hostility, que o pessoal ficou mais hostil. Nos últimos anos reparei que as pessoas estão mais fechadas, mesmo dentro das suas comunidades. Criou-se uma grande desunião e as pessoas afastaram-se umas das outras. Há mais casos de xenofobia, sobretudo provenientes da população mais velha e de fora de Londres. Já senti aquele racismo aberto, de ‘vai para a tua terra’, mas não me afecta muito. O que me afecta é aquele que surge no local de trabalho ou no supermercado; aquela discriminação silenciosa que a gente sabe que existe.

O Brexit deu um free pass, uma maior liberdade de expressão, a pessoas que já eram racistas e xenófobas. Ainda que em Londres não se note tanto, no interior do país fica mais complicado porque há menos multiculturalismo e a maioria das pessoas é cristã e inglesa de gema que quer que os imigrantes se vão embora. A propaganda do Brexit dizia que os imigrantes vinham para cá viver de benefits, de subsídios, o que não é verdade. A maioria das pessoas on benefits é britânica. Os imigrantes, pelo contrário, trabalham em empregos que os britânicos se acham bons demais para fazer – limpezas, transportes, supermercados. Quando uma pessoa vem de fora, é com o propósito de trabalhar e procurar uma vida melhor.

O referendo era supostamente uma demonstração contra os europeus, mas na verdade reflecte uma intolerância relativamente a todos os não-britânicos. Isso tem-se visto sobretudo em relação aos muçulmanos, sendo que muitos já pertencem à quarta ou quinta gerações que vive no Reino Unido. E isto tudo depois de ironicamente termos tido o caso Windrush no país. Basta olhar para a história. Se tal política aconteceu com a geração Windrush, que garantias temos nós de que não acontecerá o mesmo connosco? [n.d.r.: O escândalo Windrush emergiu de uma investigação jornalística de 2017 que expôs a política de discriminação sistémica do estado britânico que levou à deportação de cidadãos da Commonwealth – sobretudo negros provenientes da região das Caraíbas – que nasceram e viveram toda a vida no Reino Unido. A designação “geração Windrush” provém do navio cruzeiro Empire Windrush, que ancorou em Londres em 1948 com 500 imigrantes jamaicanos, muitos destinados a participar na reconstrução do país no pós-guerra.]

A mensagem transmitida pelo governo sobre o futuro não é clara. Eu, mesmo tendo o settled status, não sei se posso ir a Portugal e voltar sem ter de apresentar qualquer documento; não sei se haverá maneira de saberem no controlo de fronteiras de que vivo cá; não sei se será necessário visto para ir daqui, enquanto cidadão europeu, para outro país da União Europeia. Com que fluidez poderemos entrar e sair do país? E imagina que decido comprar uma casa: quais são as restrições [no acesso ao crédito]? Será que isto facilita a xenofobia? Ou imagina que parto uma perna: como é que o NHS funciona para nós? Tudo isto pode colocar muitas pessoas em situações complicadas.

Neste momento, quando penso no Brexit, fico um pouco ansioso. Só penso em restrições. Caiu-me a ficha. O Brexit tem riscos bem maiores do que imaginei. Saímos da União Europeia, what happens next?”

CATARINA SILVA, 31 ANOS, ENFERMEIRA DO NHS (SNS BRITÂNICO)
NO REINO UNIDO DESDE SETEMBRO DE 2013

“Depois de me licenciar em Enfermagem, em 2012, tive alguns empregos na área em Portugal, mas com contratos precários e a recibos verdes. Eram trabalhos com que não me identificava devido ao baixo salário e falta de segurança no emprego. Não estava a ver ali um futuro a curto prazo.

Um ano mais tarde, com a troika em Portugal, mudei-me para o Reino Unido, tal como muitos enfermeiros estavam a fazer. O inglês era a língua que melhor falava a seguir ao português e aqui ofereciam um contrato de trabalho com progressão de carreira, coisa que não existe no nosso país. Uma vez inserida no sistema britânico, também é mais fácil procurar a especialidade com que mais te identificas, enquanto que em Portugal te candidatas a uma vaga em concurso geral e és colocado conforme as necessidades dos serviços. Esses factores – o contrato de trabalho e a facilidade em trocar de especialidade – foram importantes para que me mudasse.

Nos últimos anos, as condições de trabalho dos enfermeiros em Portugal melhoraram. Não conheço nenhum enfermeiro que esteja desempregado, mesmo que as condições não sejam as melhores. Acredito que isso tenha contribuído para a redução no número de enfermeiros portugueses a vir para o Reino Unido. Com o Brexit, também é necessário pensar duas vezes. Os critérios para trabalhar em enfermagem são agora diferentes. Por exemplo, exigem-nos um exame de inglês para sermos aceites na Ordem britânica dos Enfermeiros, quando há uns anos não era necessário; podias mudar para cá com um nível de inglês que não era perfeito, mas que acabava por melhorar com o tempo. Isso já não é possível.

Conheço enfermeiros espanhóis, italianos e alguns portugueses que regressaram aos seus países por causa do Brexit. É difícil estar num país que não é o nosso e viver debaixo de uma grande tensão e indefinição em relação ao futuro. O trabalho que nos espera em Portugal talvez não seja tão bom em termos monetários ou de segurança, mas ao menos estás em casa, perto da família.

Creio que o Brexit não me irá afectar a nível de segurança profissional porque estou numa área de extrema necessidade no Reino Unido. Para mim, encontrar emprego não será um problema. Mas para quem venha de outras áreas que não a saúde e investigação, não sei qual será o impacto em termos de precariedade laborar ou até na igualdade de acesso ao emprego. Esse impacto só virá a médio-longo prazo.

Nesta altura, o meu maior receio tem que ver com as viagens, com a possibilidade de me deslocar na Europa sem me preocupar. Antes da pandemia, ia a Portugal a cada três meses ou então tinha familiares ou amigos que me visitavam com frequência. Não sei com que facilidade poderão visitar-me ou os poderei visitar, mesmo tendo o settled status.

Sei que não quero passar toda a minha vida adulta no Reino Unido, mas não tenho um plano temporal para regressar a Portugal. Sou feliz aqui, mas não o suficiente para permanecer por cá. Também não encontro nenhum aspecto positivo no Brexit. Só acrescenta tensão e incerteza. Não sei qual será o impacto na minha vida pessoal e profissional. Terei de esperar para ver.”

DIOGO RAPAZOTE, 31 ANOS, DESIGNER TIPOGRÁFICO
NO REINO UNIDO DESDE OUTUBRO DE 2019

“A minha empresa enviou um email para a equipa antes do Natal a alertar para os efeitos da saída do Reino Unido da União Europeia no fim do mês. Como a maioria dos colaboradores são europeus, a recomendação para quem ia passar as festividades fora do país era para que levassem o material necessário para trabalharem à distância caso não conseguissem regressar – fosse por atrasos ou complicações. Aos que iam ficar no Reino Unido, aconselharam a abastecer-se de bens alimentares em casa. É uma empresa muito meticulosa que fez simulacros com as pessoas a trabalhar em casa ainda antes do confinamento para garantir que corria tudo bem.

A minha vinda para o Reino Unido deu-se um pouco ao acaso. Tinha vontade de aprofundar o meu estudo de tipografia e numa altura em que estava a tentar entrar num mestrado na Holanda, soube de uma oportunidade de trabalho em design tipográfico numa empresa britânica. Candidatei-me, as entrevistas correram bem e acabei por decidir mudar-me.

O que me assustava sobre o Brexit era o impacto que pudesse ter tido na sociedade, embora não tivesse uma referência porque nunca tinha vivido cá. Antes de emigrar, o tema era-me um pouco alheio. O que sabia era através das notícias e do que estava nas bocas do mundo. Só quando houve a perspectiva de me mudar para aqui é que comecei a informar-me um pouco melhor. Mas as informações mudavam imenso. Era difícil saber o que realmente ia acontecer. Por isso vim de coração ao largo. Pelas informações que tinha, Londres é um pouco diferente do resto do Reino Unido. Tem imensas comunidades estrangeiras, é como uma cidade-estado e isso também me deu algum conforto.

Depois de me mudar, tentei falar com pessoas que votaram no referendo porque queria perceber os motivos para apoiarem o que apoiaram. O que encontrei, tanto de um lado como do outro, foi um cansaço geral em torno deste processo. O que venderam foi, ‘vamos romper com a União Europeia e tomar o controlo’, mas depois repararam que tomar o controlo da carruagem é um processo que leva tempo, há muitas complexidades.

Não fosse a pandemia, as pessoas iam estar mais preocupadas e focadas sobre o que vai acontecer a partir de agora. Neste momento estão meio anestesiadas, também porque passou muito tempo [desde o referendo] e não houve um reflexo no seu dia-a-dia. É este ano que as pessoas vão começar a sentir na pele o significado do Brexit. É tudo ainda muito abstracto e incógnito, mas há muitas coisas que vão mudar.

Uma das coisas que me consolou quando vim para cá era a facilidade com que poderia ir a Portugal. Nos primeiros tempos, até perceber como a vida ia ser aqui, poder voltar a casa era óptimo, sobretudo porque vim do Porto para uma cidade maior. Receio que no futuro haja complicações em viajar, que isso também seja prejudicial para a economia e que nos apanhe por tabela. A nível cultural, e mais a longo prazo, a cultura xenófoba também pode ganhar mais proeminência. São estas as minhas principais preocupações com o Brexit.

Para já, pretendo ficar por Londres. Não sei por quanto tempo, mas ao contrário de alguns amigos que estão a ponderar ir embora e outros que já foram, não tenho planos para regressar a Portugal. Mas tenho a noção de que há muitas incógnitas – Brexit, pandemia… Há muitas questões e as coisas mudam de um dia para o outro. Estou expectante. É um pouco como se dissessem que está aí a vir uma tempestade: quão má será?”


As entrevistas foram editadas em extensão e para melhorar a experiência de leitura.