A ode fotográfica de Ricardo Bravo à Nazaré

Fotografias por Ricardo Bravo

Ricardo Bravo nasceu em Lisboa em 1975. Estudou no Ar.Co, ETIC, Cenjor e doutorou-se em olhar para o mar um pouco por todo o mundo. Vive em Paço de Arcos com a Mariana, a Maria e a Matilde, a sua família. Fotografa há 25 anos “porque sim”, o que parece ser uma desculpa mais do que suficiente.

Fomos falar com ele a propósito do seu novo livro, “Nazaré“, num live no Instagram que passou agora para o papel. Foi, sobretudo, uma conversa entre amigos.


És um “fotógrafo de surf” reconhecido mundialmente pelos teus pares, estatuto que conquistaste com uma carreira de 25 anos. Se é verdade que o imaginário da praia, do mar, das ondas e dos surfistas esteve sempre muito presente em todo o teu trabalho, sei que fotografas muito bem noutros ambientes. Como fotógrafo, estares associado a essa marca do surf faz-te alguma confusão?

Confusão não me faz. Acho que é natural porque foi na fotografia de surf que investi a minha força e energia durante muitos anos. Embora, como tu sabes, porque já trabalhaste muito próximo de mim, fotografar na praia vai sempre muito além do surf. O surf é um desporto ou uma arte, o que lhe quiserem chamar, que me interessa muito, que admiro e me dá muito prazer fotografar. Mas vejo-o como algo muito maior do que ser só um surfista numa onda. Há muito mais para explorar e todo o universo do surf é muito vasto.

Não me incomoda que a imagem que as pessoas têm daquilo que faço em fotografia possa ser redutora. É até um elogio acharem que essa é a minha forma de conseguir estar profissionalmente na vida. Era bom até que conseguisse fazer só isso. Mas ao mesmo tempo também seria um bocadinho redutor. É sempre enriquecedor estar noutras áreas e fotografar outros temas. Isso dá-me prazer. Aos poucos, nos últimos anos, também tenho feito um esforço de mudar um bocado essa imagem, mostrando mais o meu trabalho noutras áreas. Nesse aspecto as redes sociais foram importantes, conseguimos controlar mais a nossa montra.

O que é que tu gostas mais de fotografar para além de surf?

O que me dá sempre mais prazer fotografar é o mar, independentemente de estarem lá surfistas ou não. Sempre fiz isso um bocadinho à margem. Combinava uma sessão com um surfista e se ele chegasse mais tarde isso não me incomodava. Ainda hoje arranjo tempo para estar a fotografar o mar e as horas passam num instantinho. Em termos profissionais, e também por prazer, gosto muito de fotografar cidades. Isso tem que ver com uma das áreas que mais tenho explorado ultimamente que é a fotografia de arquitectura e interiores. Também gosto de fotografar automóveis e eventos. A fotografia está sempre por trás disto tudo e o interesse máximo é fazer uma boa fotografia. Muitas vezes é fotografar porque sim, outras vezes é fotografar com um objectivo pré-determinado.

E ultimamente o vídeo também…eu tinha um bocadinho a ilusão – e já percebi que estava errado – que [o vídeo] estava muito mais próximo da fotografia do que aquilo que realmente está. Vídeo é imagem, mas noutro registo, com outra forma de pensar e outra forma de olhar para as coisas. Claro que o background da fotografia é muito valioso, mas é outro mundo para descobrir.

Falaste das redes sociais. Esse é um tema fascinante para mim. Porque há aqui também muita ambiguidade – na qual caímos todos – que acho interessante explorar. Aquilo que te queria perguntar, antes de mais, sobre as redes sociais é, talvez, uma questão técnica. Tu cresceste como profissional a publicar em revistas, em papel, ou a fazer exposições onde vias as tuas fotografias impressas. Portanto, as fotografias eram vistas de forma diferente, e as pessoas tinham uma relação diferente com a tua fotografia, mais táctil, por assim dizer. Agora as imagens são produzidas para serem vistas em smartphones, iPads ou computadores (com alguma sorte). Gostava de perceber até que ponto isso mudou a tua forma de fotografar, se é que mudou.

Não sinto que tenha alterado a minha forma de fotografar. Se calhar a dada altura alterei a minha forma de editar o trabalho. Não sei se foi um erro mas há um detalhe…talvez há dois anos mais ou menos, começou a haver uma saturação tão grande de imagens que para as pessoas verem as tuas imagens, tu tinhas que puxar ali um bocado pelos contrastes e pelas cores. Quando dei por mim, estava a deixar condicionar-me por isso. Mas tive essa percepção e voltei a fazer a edição que fazia.

Nas redes sociais, toda a gente tem acesso, toda a gente publica, há sempre excesso de imagens e há muitas imagens boas que depois se perdem no meio das imagens más. E isso obrigou-me a ser um editor mais exigente. Quando estás a gerir a tua rede social, és tu quem toma as decisões todas [ao invés de um trabalho para revistas, em que há o apoio dos editores na escolha das melhoras imagens]. No começo se calhar negligenciava um pouco esse lado, mas cada vez mais dou importância a isso e tenho muito cuidado com aquilo que publico e como publico, porque é ali que vais trabalhar a tua imagem e angariar o próximo trabalho.

Mas o mais difícil para mim é acompanhar a velocidade [de publicação] que o Instagram pede, mantendo essa qualidade. É desgastante estar a tentar acompanhar isso. Muitas vezes atraso a publicação das coisas. As pessoas que me seguem no Instagram sabem que não alimento muito a parte das stories. Tenho muito mais cuidado no feed principal. O Facebook é a rede a que presto menos atenção em termos profissionais. Isto depois liga-se tudo, porque há muitos trabalhos que surgem através de amigos.

Falaste aí numa mudança na edição de imagens no Instagram, a nível de cores e contrastes. A minha próxima questão vai um pouco nesse sentido. Acho que o Instagram é uma rede social muito fixe e democrática, onde podes estar em contacto com pessoas de todo o mundo e isso é muito interessante. Tem um potencial de ligação entre pessoas muito grande. Mas depois há outro lado. Para quem vive de ter alguma visibilidade, tem que se trabalhar as hashtags certas, e isso, por sua vez, determina uma certa estética que tem de ser seguida. Isto é, parece haver um caminho para o sucesso que não é assim tão fixe ou democrático…

Tu estudas mais essas coisas do que eu, estás mais atento. Mas eu tenho ideia que nos últimos tempos isso começou a inverter-se um bocado. As pessoas estão a ficar um bocadinho cansadas de tanto ruído, de tanta hashtag. Tenho notado isso no meu [feed]. Simplifiquei muito o aspecto visual do meu Instagram nos últimos meses. Tenho usado muito menos as hashtags, publico muito menos texto e tem corrido bem. Também alterei a tal edição da fotografia. Uso coisas muito mais suaves, limpas e leves.

Tenho ouvido falar disto através de pessoas ligadas ao marketing, que por sua vez preferem estar ligadas a fotógrafos ou actores – chamemos a todos influencers, uma palavra assim um pouco irritante, mas que faz parte do nosso tempo – que interagem muito com os seus seguidores, mesmo que sejam poucos. Ou seja, as pessoas que os seguem gostam mesmo deles e estão ali genuinamente, não estão ali para se seguirem uns aos outros naquela troca de favores um bocadinho ridícula, mas que existe. Isso é mais valioso para muitas marcas, ao invés de [se aliarem a] pessoas que têm muitos seguidores. Porque não são eles que fotografam, há ali uma equipa enorme montada por trás e tudo aquilo já parece plástico, já não parece a vida real.

Concordas que as hashtags conduzem a uma certa uniformização ou vice-versa? Às tantas as imagens parecem ser todas iguais. Esteticamente vai tudo na mesma corrente. Vês imensas imagens semelhantes – parece uma fábrica. Parece-me que esse lado mais falso bloqueia todo o potencial do Instagram…

Deverás lembrar-te que quando o Instagram apareceu, eu era manifestamente contra. Inicialmente, se calhar 90% das imagens era lixo, sem qualquer valor. Toda a gente pegava no telemóvel, tirava uma fotografia e punha no Instagram. Felizmente, com o passar do tempo, ganhou mais e melhores utilizadores. As pessoas começaram a perceber que as boas imagens ganhavam e que ninguém ligava nenhuma às más. Isso até fez com que nascessem muitos e bons fotógrafos através do Instagram; pessoas que se calhar nunca tinham tido oportunidade de mostrar o seu trabalho e encontraram nesta ferramenta essa possibilidade.

A verdade é que hoje em dia vejo muitos trabalhos que também não teria outra forma de ver; fotógrafos que dificilmente poderiam publicar um livro e que se calhar agora até já podem por causa desta oportunidade. Nisso concordo contigo, tem lados positivos muito fortes. Depois tem o outro lado: há excesso de imagens. Olha, é um bocadinho como a televisão: muda de canal. Escolhe o que queres ver e se estás a ver lixo, a culpa é só tua. Não nos podemos queixar quando a opção é só nossa.

Vamos à Nazaré. Recentemente, houve lá mais uma sessão com ondas gigantes e isso abriu os telejornais, não pelos melhores motivos [muito público e ausência de distanciamento social em contexto da pandemia da Covid-19]. Mas vamos voltar um pouco atrás. Havia um fotógrafo que tinha umas imagens bonitas da Nazaré e de São Pedro do Moel nos anos ’90 que era o Miguel Costa, depois apareceu o Dino Casimiro – grande dinamizador da cena local – mas tu foste também dos primeiros a ficar fascinado com aquelas ondas. Há quanto tempo foi isso?

Via as imagens do Miguel Costa na SURFPortugal e eram lindíssimas. Lembro-me que umas mostravam as ondas antes de rebentarem, que é uma coisa que normalmente não aparece nas revistas de surf. Mas ele fotografava e o João Valente escolhia e publicava. Essas imagens eram fascinantes.

A primeira vez que fui à Nazaré foi num evento chamado Billabong Expedition, com o Tiago Pires, o Ruben Gonzalez, o Mica Lourenço, o Nuno Telmo, o Miguel Fortes e o Marco Perini a cozinhar…ele tinha uma carrinha com as panelas todas e quando parava, cozinhava a sua comida italiana. Era assim uma surftrip clássica – com uma data de gente, a andar por aí na costa portuguesa. O [Miguel] Fortes sugeriu irmos à Nazaré, mas não havia ondas nesse dia. Então, não fiquei muito impressionado, porque depois subimos para Pedrógão e aí apanhámos ondas boas. Portanto, na minha cabeça, a Nazaré não dava ondas assim tão grandes.

Só uns anos depois é que voltei lá por causa do campeonato de bodyboard que era o Special Edition, aí já organizado pelo Dino Casimiro, o Nuno Amado e o Paulo Lopes. Era um campeonato em que tinha de estar ondas boas de, pelo menos, dois metros e meio. Foi aí que percebi o potencial da Nazaré e da qualidade das ondas. Mas nunca me passou pela cabeça que pudesse chegar ao que chegou agora.

A quem passava isso pela cabeça, e de forma muito insistente, era ao Dino Casimiro, que era um bodyboarder de lá, professor de ginástica na escola e ligado ao clube local. O Dino é uma pessoa muito persistente! Então, ele andava com uns álbuns antigos da Kodak com fotografias de dias clássicos na Nazaré, com aqueles triângulos enormes a quebrarem com off-shore. Ele queria convencer-nos a todos que era possível surfar aquilo. Quando o víamos com as fotografias, pensávamos, “lá vem o maluquinho”. Mas ele tanto insistiu connosco que realmente se começou a ir lá mais vezes. O José Gregório, o Tiago Pires e o Ruben Gonzalez começaram a surfar lá na altura em que o tow-in estava a aparecer. Mas o Dino não nos chateava só a nós! Não era de se dar por vencido e começou a chatear pessoas a nível internacional, a mandar emails para todos os lados com as fotografias. Até que o Garrett [McNamara] acreditou que era possível e aí é que a coisa realmente disparou.

Foram pequenas coisinhas que foram criando a minha ligação com a Nazaré, mas lembro-me perfeitamente de fotografar lá ainda antes do Dino convencer o Garrett. No fundo, foi por causa do Dino me chatear tanto e de eu ter começado a perceber que aquilo tinha realmente potencial e por ver o que é que os bodyboarders já faziam ali…

Para dar um pouco de contexto, houve lá um campeonato de bodyboard em 2007 cujas imagens estão no YouTube e são impressionantes. Os bodyboarders foram os primeiros a surfar na Nazaré a sério. Tu ias fotografar a Nazaré quando era praticamente lineups vazios e davas por ti, se calhar, a fotografar sozinho no Farol. Agora não é bem assim e é um dos lugares mais bem documentados do mundo a nível de imagem. Como é que tu vês a evolução da Nazaré do ponto de vista da fotografia, sabendo que agora o factor humano está claramente inscrito na paisagem? Como é que desconstróis isso na tua cabeça? Fotografas como se fosse o primeiro dia?

Fotografar no mar tem sempre uma vantagem – não há dias iguais. Consegues sempre manter parte do entusiasmo por aí. Eu tenho essa relação com Carcavelos, que é aqui a cinco minutos de casa e onde não encontro dois dias iguais.

Hoje em dia, na Nazaré, por vezes há uma relação amor-ódio. São palavras um pouco fortes, mas que dá para perceber a ideia. Por um lado, continuo a gostar imenso de ir lá. Aquelas ondas têm uma dimensão que só percebes quando aqueles surfistas estão na onda ou quando estão a passar por cima de uma onda. Dá-te escala. Isso tem um pouco jornalístico. No surf de ondas grandes, ainda se está a quebrar barreiras com alguma facilidade – com muitas aspas, que aquilo não é nada fácil. Mas não se bate um recorde do mundo de natação de 200m com a mesma frequência com que se bate o recorde do mundo da maior onda surfada. A História ainda está a ser escrita e a um ritmo muito rápido. Ainda está tudo muito no princípio e há muita coisa nova a acontecer, então há esse lado de curiosidade de quereres registar isso tudo.

Depois há o público: por um lado, permite compor imagens diferentes – tens aquela gente toda ali e estás a registar nesse tal olhar jornalístico; por outro, confesso que me deixa incomodado haver tanta gente. Conheces-me bem, sabes que gosto muito de fotografar sozinho no meu canto. Ali, por vezes estou a levar cotoveladas enquanto fotografo. É muito estranho estar nessa situação. Se eu estiver como quero estar a fotografar, não tenho ninguém ao pé de mim num raio de 30 metros, pelo menos. Isso ajuda-me a concentrar, a viver as coisas.

Esta é uma perspectiva muito minha e um bocado egoísta. Mas estou mais do que grato por aquilo que o Dino iniciou, que o Special Edition e os bodyboarders iniciaram, porque em termos profissionais a Nazaré tem sido muito boa para mim. E em termos criativos também. Há o fascínio de ver aquelas ondas ganharem formas completamente surrealistas. É impossível criar aquilo, só mesmo na natureza. Essa questão de estar muita gente, da confusão, do circo todo que se monta, acaba por ser uma questão menor para tudo o que tiro de bom dali.

“É completamente assumido e quase normal a forma como [os surfistas de ondas gigantes da Nazaré] falam da morte e como a morte faz parte do processo”

Fiz-te essa pergunta para nos levar ao que aqui verdadeiramente nos traz: o teu livro sobre a Nazaré. Fala-nos desse projecto.

Eu agora tinha disponibilidade para mergulhar a fundo [num livro], ficar umas noites sem dormir e passar muitas horas a escolher imagens e a tomar decisões. Então decidi avançar!

[O livro] acabou por chamar-se mesmo “Nazaré”, porque sinceramente não consegui encontrar uma definição para aquilo que tinha aqui no meu arquivo. “Nazaré” é único, só ali é que podes fazer aquelas imagens. Sendo que encontrei ali um conceito que foi um bocadinho a minha muleta para facilitar a edição de imagens. Estamos a falar de olhar para 7 ou 8 mil imagens e decidir quais são as que vão ficar no livro. Isso é um processo um bocado ingrato. No fundo estás a escolher entre os filhos (risos).

O conceito base era explorar um lado que sinto muito na Nazaré. Normalmente, vou um dia ou dois antes da ondulação e se puder fico mais uma manhã ou tarde. E às vezes vou lá quando não se passa nada, quando há só uma tempestade e sei que o mar vai estar revolto. Gosto de andar a passear na vila nesses dias para sentir o que é a Nazaré. Continuo a saber muito pouco sobre a vila. Como qualquer terra tens de viver lá. Tens de construir relações, conhecer as pessoas. Mas tento passar lá, passear só com a câmara na mão, sem nenhum plano definido. Isto para sentir uma coisa que depois quis transmitir no livro: o contraste total que há entre os dias de calmaria no mar, ou dias em que não há ondas grandes e boas para surf, e dias normais de Nazaré.

A Nazaré continua a ser uma vila calma, com as suas tradições e hábitos, que nada tem que ver com a loucura total que se viu agora. Para muita gente que viu nas notícias foi novidade, mas para quem costuma ir lá é o normal. Há engarrafamentos, pessoal a fazer churrascos no meio das colinas, caravanas, tudo e mais alguma coisa. É um verdadeiro circo e tem piada observar aquilo. É até o tipo de sítio em que gostava de ver um trabalho foto-jornalístico feito por um dos grandes mestres dessa área porque acho que se conseguem produzir ali imagens muito interessantes.

Depois achei que precisava de palavras para complementar as imagens. Parece-me que torna o livro bastante mais completo e interessante. Então desafiei o Pedro Adão e Silva e o João Valente para escreverem, cada um, o seu prefácio, porque também me pareceu interessante que duas pessoas com uma postura tão diferente na vida e na forma como escrevem e pensam o surf escrevessem sobre este tema. E realmente escreveram dois prefácios completamente diferentes – gosto imenso do que está ali escrito.

Depois fiz umas pequenas entrevistas ao Alex Botelho, Andrew Cotton e João de Macedo. Também são três personagens completamente diferentes umas das outras, mas com quem tenho relação bastante próxima, especialmente os dois portugueses. Então peguei em excertos dessas entrevistas e usei ao longo do livro para ir quebrando o ritmo da fotografia. Há páginas só com texto, quatro ou cinco linhas de coisas que eles dizem sobre estarem ali no porto calmamente a preparar as coisas e de repente no estarem no mar sem saber se vão estar vivos no próximo minuto. É fascinante ouvi-los falar sobre isso e perceber como estão quase num planeta diferente do nosso.

Se calhar, hoje em dia, e infelizmente, tem passado um bocadinho uma ideia de que aquilo é tudo uma coisa de egos. Não é. Obviamente que o ego representa ali uma parte importante, como é normal em qualquer ser humano, mas há muito mais para além disso. Eles atingem um nível de consciência do corpo que está ao alcance de muito poucas pessoas. A capacidade que eles têm de lidar com situações em que qualquer pessoa normal se afogava num instante enquanto a eles parece que não acontece nada. Uma coisa que achei interessante é como é completamente assumido e quase normal a forma como falam da morte e como a morte faz parte do processo. Não é uma lógica de, “sou o super-homem, não me vai acontecer”, mas sim de, “faz parte e pode acontecer”. Eles estão conscientes disso. Quanto ao resto, espero que o livro corra bem.

Estavas a falar sobre os bastidores de um surfista na Nazaré, dessa preparação toda. Gostava de perceber como é que é um dia normal para ti? As pessoas têm ideia de que “fotografar surf” é uma vida meio idílica. Ainda te levantas cedo?

Levanto, sim, muitas vezes. Umas vezes para ir fotografar; outras, como moro e trabalho no mesmo prédio, em lugares diferentes, para ir para o estúdio. Vou tentando manter o equilíbrio, com o apoio da família, entre ser pai, fotógrafo freelance e ainda fotógrafo de surf. As crianças obviamente têm os seus horários, não dá para deixarem de ir à escola porque entrou um swell na Nazaré.

As rotinas que tenho são as que vêm na sequência de ser pai, portanto, são as rotinas das minhas filhas; e tenho a rotina de consultar a previsão do mar todos os dias, às vezes mais que uma vez. É o que me permite conjugar os trabalhos das outras áreas e manter essa ligação com fotografia de surf e mar. Ainda há dias fui fotografar um estúdio de ioga na Ericeira e levei o equipamento que precisava para fazer esse trabalho, mas também levei equipamento para fotografar surf. Antes do trabalho, parei 15 minutos no miradouro de Ribeira d’Ilhas, um sítio onde nunca tinha fotografado…

Nem tu nem ninguém…

Exacto. E quando saí do estúdio de ioga, parei mais 10 minutos na Cave, num sítio onde também nunca tinha estado…

Lembro-me de me teres dito aqui há uns dias que foste duas vezes à Ericeira no mesmo dia. Isso é uma loucura, só um tipo obstinado e trabalhador é que faz isso.

Não há um fundo racional em nada disto. Acabas por fazer as coisas muito por instinto. Só depois é que pensas que não fez sentido nenhum. Mas já foste, voltaste e se calhar tiraste a fotografia. Acontece muito às vezes chegares, pensares que vai estar muito bom, mas não está. Às vezes já combinaste com alguém ir fotografar, desmarcas tudo e voltas umas horas depois. Isto é a tal visão idílica e romântica que as pessoas têm. Não dá para ficar ali no carro três horas à espera. Ou tenho de ir para o estúdio ou tratar de coisas da casa, seja o que for. Há sempre muita coisa para fazer. Também não tenho esse espírito de ficar só à espera que o tempo passe. Não gosto muito de estar parado. Gosto de contemplar quando estou a fotografar, mas gosto de estar a fazer coisas e tenho sempre muita coisa planeada. É o caso agora do livro, que acaba por me ocupar muitas horas, mas são tudo coisas que faço com prazer e que fazem parte desta esfera da fotografia.

Dei o exemplo da Ericeira e já falámos da Nazaré. Vives na Linha e acho que tens uma relação muito interessante com o lugar que se percebe através das fotografias que tiras. Mas qual é o sítio onde te sentes mais em casa a fotografar?

Nunca me sinto em casa a fotografar. Parece que estou sempre a descobrir coisas. Tem piada estares a perguntar isso. Eu não me sinto daqui nem me sinto de lado nenhum em particular. Acho que me ia sentir limitado se me sentisse de algum lado em particular e quase negasse a existência ou interesse de outros sítios.

Mas és um bocadinho mais da Costa…

Sim porque foi onde aprendi a surfar. Isso fica sempre marcado. E continuo a surfar onde aprendi, na Praia Nova, mesmo que na praia ao lado esteja melhor. Mas havendo ondas em Carcavelos, vou surfar aqui. Na Costa gosto daquela extensão muito grande de praia e areia. Sabe muito bem estar ali. Mas aqui na Linha aconteceu uma coisa curiosa ainda esta semana. Se for ver o meu portefólio de fotografias da Linha, se calhar 90% delas são de Carcavelos. E há muito mais para fotografar aqui em termos de surf. Só que cada vez que penso que devia conduzir mais três ou quatro quilómetros para fotografar São Pedro, chego a Carcavelos, vejo que a luz está bonita, as ondas estão boas, e fico preso ali. Continuo a sentir que ainda não fotografei Carcavelos como merece ser fotografada. É quase um bloqueio.

Repito muito os mesmos sítios para tentar fazer o melhor possível. Na Nazaré, continuo a sentir-me completamente perdido sobre qual será o melhor ângulo, por mais vezes que vá lá. Até porque não há melhor ângulo ali. As ondas têm uma dimensão e variedade que é muito difícil. Ainda esta última vez descobri mais um sítio completamente por acaso. Isso define muito a minha maneira de fotografar: a persistência de querer melhorar mais um bocadinho, repetir os sítios e provar que é possível fazer coisas diferentes.

“Olhar para 7 ou 8 mil imagens e decidir quais são as que vão ficar no livro é um processo um bocado ingrato. No fundo estás a escolher entre os filhos”

Antigamente existiam revistas de surf e estavas na correria para tentar fazer uma fotografia que sabias que podia ser publicada. Hoje em dia, tirando o trabalho comercial que tens de fazer, não só na área do surf, mas nas outras áreas, o que é que te move? É essa cena de tirar a fotografia que ainda não tiraste em Carcavelos?

Não sei responder a isso. Nas revistas era muito claro: havia o objectivo de ter a fotografia publicada. Mas quando ia fotografar, não ia com isso na cabeça. Isso era um processo posterior, quando estava a ver as imagens – qual seria boa para ser publicada, qual iria apresentar aos editores. Ou então havia um pedido prévio da revista, que no fundo é equivalente ao trabalho comercial que faço agora. Claro que havia um lado competitivo entre fotógrafos, que continua a existir de certa forma. Quem consegue fazer uma imagem melhor ou diferente do outro, pelo menos, e isso também é uma motivação.

Mas essa vontade de continuar a fotografar vem, acima de tudo, desse fascínio pelo mar e pelas possibilidades que tem enquanto assunto para ser fotografado e que está sempre a mudar. Não há dias iguais e eu queria que isso fizesse parte da minha vida. E até houve momentos da minha vida profissional que fizeram despoletar isso. Por exemplo, trabalhei 6 meses numa loja de fotografia – no fundo, experimentei outras áreas completamente diferentes – e percebi que não era aquilo que eu queria que fosse o meu dia-a-dia. Queria que fosse sempre ligado ao mar e à fotografia de mar e tivesse sempre alguma coisa a ver com isso. Às vezes quando digo fotografia de mar até pode ser fotografar um surfista em estúdio, para mim continua a ser uma ligação com o mar e com as pessoas que fazem parte desse meio.

Com o passar do tempo percebi que não é preciso que isso esteja assim tão presente como já esteve na altura em que trabalhava ao mesmo tempo com a SURFPortugal, com a Surf Europe, a Quiksilver. No fundo, o meu dia-a-dia era 90% ligado a isso. Hoje em dia é muito menos. E se há dias em que realmente dá uma certa nostalgia e uma vontade que tudo volte a ser como era, há outros em que é muito claro que até é mais saudável que seja assim para não ser uma coisa tão obsessiva e condicionante. Porque isto condiciona-te os movimentos todos. Cada vez que vais fazer uma coisa diferente, perguntas-te se há ondas boas naquele dia. E se podia estar antes a fotografar o mar. Se podia estar a fazer um trabalho para uma empresa de surf em vez de estar a fotografar outra coisa. Por ter reduzido nos últimos anos essa presença da fotografia de surf, acho que dei e dou mais valor do que dava e torno a relação mais saudável. Deixa de ser tão obsessivo.

Qual seria a melhor banda sonora para o teu livro “Nazaré”?

O livro ainda está muito na fase da imagem para estar a pensar em sons que associaria. A minha banda sonora de há muitos anos para associar vem de um sonho que ainda tenho por concretizar. Gostava muito de um dia fazer um trabalho com o músico Rodrigo Leão, que acompanho há muitos anos. Nunca nos conhecemos, mas é um músico que identifico muito com o meu trabalho. Muitas vezes estou a ouvir no carro quando vou fotografar. Eu e a minha mulher já vimos todos os concertos que podíamos ver, fazemos sempre questão de ir ver. Está ligado à minha vida desde há muitos anos e era uma coisa que um dia gostava de fazer.


Entrevista editada em extensão e para melhorar a experiência de leitura.