Chelas Nha Kau: um olhar de dentro sobre a vida da juventude da Zona J

Illustração por José Mendes (lettering do poster)

Fotografias por Bataclan 1950/Bagabaga Studios

Chelas. Não é muito difícil adivinhar expressões e reacções quando o nome deste bairro lisboeta surge em conversas. Os preconceitos sobre este correm como feridas profundas no imaginário coletivo português: há quem jure que é o bairro mais perigoso do país; que os seus habitantes se resumem a bandidos e delinquentes à margem da sociedade; que quem entra no bairro sai com uma história de furtos e confrontos violentos para contar. É tanto o disse-que-disse – em boa parte, semeado pelos meios de comunicação – de quem provavelmente nunca pisou o bairro ou conviveu com as suas gentes que a percepção hostil da sociedade sobre aquele território se traduziu em décadas de exclusão social dos chelenses.

Nesse sentido, há uma pergunta que surge na mente: o que significa ser de Chelas? E para os mais novos, o que significa ser um jovem da Zona J e carregar às costas o estigma de viver no código-postal 1950?

Em Chelas Nha Kau, filme-documentário realizado pelo grupo de amigos Bataclan 1950, da Zona J, e a cooperativa de produção jornalística Bagabaga Studios, encontramos muitas respostas a essas perguntas. Produzido ao longo de quatro anos, o documentário reúne uma generosa amálgama de registos captados no bairro através de telemóveis, pequenas camcorders ou máquinas fotográficas pelos próprios membros do Bataclan. Daqui parte-se para uma viagem única pelo interior da Zona J, pelo rap street de que o Bataclan se orgulha e pela vincada união comunitária que existe no bairro.

Ao mesmo tempo, é através das experiências diárias destes jovens locais que se desconstrói a caracterização sórdida de Chelas nos media, a discriminação que sofrem no mercado de trabalho e a persistente violência policial. Como se lê na sinopse: “No filme, dão-lhes uma segunda oportunidade: ‘Vêem um bairro problemático, pensam logo isso, mas não… Venham cá ver como é que é’.

Integrado no festival de cinema documental DocLisboa, que decorre na capital, Chelas Nha Kau (Chelas Meu Lugar) estreia a 25 de Outubro, às 16 horas, na Culturgest. Segue-se a 26 de Outubro, às 15 horas, uma sessão para escolas aberta ao público no Cinema S. Jorge. Foi com essa estreia em mente, e no espírito coletivista do documentário, que nos sentámos a conversar com membros do Bataclan 1950 e do Bagabaga Studios para aprofundarmos as motivações e debates por trás do projecto.


Como é que surgiu a ideia de realizar este documentário?

Sofia da Palma Rodrigues (Bagabaga Studios): Uma das actividades do projecto Dá-te ao Condado E6G, promovido pela Associação Aguinenso, era um atelier multimédia, que os Bagabaga Studios foram convidados a dinamizar entre 2016 e 2018. Durante esse atelier, haveria uma partilha de ferramentas para edição e captação de vídeo e som. Este grupo, o Bataclan 1950, que mais não é do que um grupo de amigos da Zona J, foram as pessoas que participaram desse atelier.

O projecto incluía fazer um documentário sobre o próprio projecto. Só que chegámos lá e claro que isso não ia resultar, porque era uma ideia pré-concebida no papel. Aquelas pessoas tinham vontades próprias. Então perguntámos o que eles queriam fazer. A primeira coisa foi um videoclipe da música “Chelas City”, que tinham acabado de escrever. Depois, dentro de um filme, perguntámos o que é que gostavam de fazer. Eles disseram que queriam mostrar o que é ser jovem na Zona J. A partir daí foi um processo de partilha: da nossa parte, o que é que é preciso para fazer um filme que conte o que é ser jovem na Zona J; e eles a identificar quem são as pessoas que queriam ouvir para aquela história. 60% das imagens do filme foram captadas por eles.

Foi maravilhoso. Para dizer a verdade, nunca tivemos a ambição de que este documentário chegasse a um festival de cinema ou algo mais do que um exercício escolar que resultou de um atelier multimédia. O sonho foi-se construindo.

Numa entrevista vossa ao Fumaça, o jornalista Ricardo Esteves Ribeiro descreve o Bataclan não apenas como um grupo de amigos mas também um espaço onde vocês se encontram. Como é que vocês definem o Bataclan 1950?

Ana Rita Andrade, 19 anos (Bataclan 1950): Inicialmente era um espaço e depois acabou por se tornar num grupo de amigos unidos, com as mesmas ideologias e objectivos de vencer as desigualdades sociais dentro do bairro. Estamos sempre juntos. [Essa união fez-se] mais à base da música, do rap. Nós já actuámos em escolas, em espectáculos de final de ano ou de listas [das Associações de Estudantes].

E em Chelas Nha Kau, o que é que o Bataclan procurou mostrar sobre o que é ser jovem na Zona J?

Sandro Santos, 23 anos (Bataclan 1950): Quisemos mostrar uma imagem diferente daquela que os media tentam transmitir. Nem tudo o que falam na televisão é verdade porque não sabem o que se passa aqui no dia-a-dia. Não estão cá connosco para ver.

Existe sempre um lado bom e mau e nós quisemos transmitir o bom que a nossa geração viveu no bairro. Daqui a 10 anos, se calhar muitos miúdos vão ver o filme e dizer, ‘esse bacano tem razão’, porque estamos a falar do que passámos na infância e juventude.

Ana Rita Andrade: Procurámos falar sobre os problemas que existem dentro do bairro; as coisas que acontecem aqui. Falamos muito sobre desigualdade social ou intervenção policial nos bairros; muitas coisas que são um problema e que por sermos de um bairro nos desenquadra um pouco da sociedade. Quisemos mostrar o que não é bem compreendido, que não somos apenas o que diz quem é de fora.

Sofia Palma Rodrigues: Também abordam, além da exclusão e da violência policial, a questão de, enquanto jovens da Zona J, terem muita dificuldade de acesso ao mercado de trabalho.

Ana Rita Andrade: É verdade, isso não é mentira nenhuma. O pessoal nos empregos não costuma dar a morada da Zona J.

Sandro Santos: Sim, não dizemos que somos de Chelas, mas de Marvila. Soa de maneira diferente. Se disseres que és de Chelas, Zona J, muita gente vai complicar. Isto é um rótulo que se forma na cabeça da população. Não é de agora. Acho que têm de dar mais valor à pessoa do que ao sítio de onde vem.

“Quisemos transmitir o bom que a nossa geração viveu no bairro”

— Sandro Santos (Bataclan 1950)

Sem dúvida. Vocês já sentiram esse estigma na pele?

Ana Rita Andrade: Eu já me inscrevi para trabalhar num Continente, mas tenho perfeita noção de que não vou trabalhar lá por ser quem sou. Já roubaram naquele Continente e já me deram a dica, ‘não vens para aqui roubar’ porque esteve lá [a trabalhar] uma rapariga de Chelas. Eu disse que já tinha trabalhado em vários sítios e que me sinto completamente competente para fazer uma coisa para a qual não me chamam. Para eles todas as pessoas que pertencem ao bairro são farinha do mesmo saco. Mas há maldade em todo o lado, não é só no bairro.

Isso também advém da visão preconceituosa que alguns meios de comunicação constroem sobre a população de Chelas…

Sandro Santos: Olha este exemplo. Nós somos um grupo com cerca de 45 membros. Há pouco tempo houve um problema. Uns indivíduos que são nossos amigos e fazem parte do Bataclan supostamente fizeram um assalto. Mas nos media escarrapacharam as caras de pessoas que não tiveram nada que ver com aquilo.

Estás a falar de uma reportagem que passou há uns meses na CMTV…

Sandro Santos: Essa mesmo! Repara, tivemos a infelicidade este ano de um dos cantores principais [do Bataclan] ter tido um acidente de mota. A pessoa estava internada, em coma, mas foi a cara dela que apareceu no jornal. Ele estava internado num hospital!

Sofia Palma Rodrigues: Primeiro pegaram no nome Bataclan e designaram como um gangue, quando no fundo é um grupo de amigos. Depois, pegaram nas imagens do videoclipe que fizemos todos juntos e espetaram a cara das pessoas que participam no videoclipe e associam-nas ao ‘gangue’ Bataclan.

Por acaso nenhum de nós dos Bagabaga aparece no videoclipe, mas aquelas pessoas que estavam ali a participar de um projecto de repente viram a sua cara e o seu nome associados a um gangue. O Sandro foi um deles.

“Nunca tivemos a ambição de que este documentário chegasse a um festival de cinema (…). O sonho foi-se construindo”

— Sofia da Palma Rodrigues (Bagabaga Studios)

Tendo em conta essa experiência com os media relativamente o modo como retrata a Zona J, como é que se gerou confiança entre o Bataclan e o Bagabaga Studio para produzir o documentário?

Sandro Santos: No início tivemos algumas reservas. Não queríamos dar-nos a conhecer. Estávamos a criar o nosso meio. No princípio tivemos um meio problemático. Estávamos metidos em algumas confusões. E nós somos desconfiados, então pensámos duas vezes. Mas acho que nos demos bem com os Bagabaga, eles também gostaram de nós, foram cinco estrelas. Souberam agarrar-nos bem.

Sofia Palma Rodrigues: Para dizer a verdade, nós por natureza não levamos a quantidade de preconceitos e estereótipos sobre Chelas que a maioria das pessoas leva quando vai para o bairro pela primeira vez. Mas tínhamos os nossos próprios preconceitos internos no sentido de apanharmos jovens difíceis. Havia um receio sobre como nos iríamos adaptar todos uns aos outros. Essa adaptação é feita todos os dias numa base de confiança mútua, como aliás acontece em qualquer relação humana. Vamo-nos conhecendo, percebendo se gostamos uns dos outros e se temos confiança uns nos outros para avançar. Acho que este projecto foi isto.

Sandro Santos: Quando vieram ter connosco, vocês não sabiam que iam fazer o documentário ou já tinham essa ideia?

Ricardo Venâncio Lopes (Bagabaga Studios): Nós íamos descobrir mutuamente o que íamos fazer. Essa era a parte divertida e interessante neste processo.

Nós temos cada vez mais uma postura crítica sobre muitos destes projectos. Na realidade, tu não queres fazer uma coisa sobre os outros, queres fazer uma coisa com os outros. Isso só é realmente possível se houver um interesse mútuo. Senão, é só uma grande hipocrisia teres lá a palavra ‘coletivo’ ou ‘participado’. Nós [a equipa Bagabaga que co-realizou o documentário] não somos de Lisboa. Tínhamos estado em Chelas meia dúzia de vezes, não conhecíamos bem o bairro. A primeira coisa que fizemos foi pedir para nos mostrarem o bairro. Lembro-me que chegámos lá e saímos a passear com eles. Essa foi a nossa forma de os conhecermos, de conhecermos o bairro.

Sofia Palma Rodrigues: Acho que isto é muito interessante como crítica a como é que são feitos os projectos nos bairros. Como é que se cria. Nós fomos convidados para dinamizar um atelier multimédia. Dentro do projecto havia uma alínea sobre fazer um documentário do projecto. Mas quando chegámos a Chelas e começámos a trabalhar com o Bataclan, rapidamente percebemos que podíamos fazer sozinhos um documentário sobre o projecto. Agora, com eles não iríamos conseguir fazer esse documentário. Até porque nem nos interessava – nem tinha de interessar. Porque é que tinha de interessar a um grupo de jovens entre os 15 e 19 anos filmar um projecto de acção social do seu bairro do qual eles nem sequer participam? A partir daí, rapidamente dissemos, ‘uma coisa é o que está no papel, outra coisa é o que nós vamos fazer’. Só vamos conseguir fazer alguma coisa se for de facto participado.

Eu acho que muitos destes projectos se constroem a partir da ideia, ‘eu vivo num bairro, então eu tenho de estar sempre disponível para participar em projectos de acção social’. Cada pessoa tem a sua vida, anda na escola, trabalha, tem filhos, tem pai e mãe. Porque é que hão-de estar disponíveis para participar num projecto de acção social? O princípio está logo errado. Quem faz este tipo de projectos pensa que está a levar uma mais-valia sem perguntar ao outro se aquilo é de facto uma mais-valia para ele.

Sandro Santos: Há muitos jovens aqui que trabalham e não têm possibilidade de ir [às associações e projectos locais]. As pessoas pensam que quem vive nos bairros não tem nada para fazer e tem de se dedicar aos projectos sociais.

Ou seja, encontraram um ponto de interesse comum e deixaram-se levar pela partilha de experiências, ‘sem plano’…

Ana Rita Andrade: Exactamente. Foi mega espontâneo, foi acontecendo. Não havia plano.

Ricardo Venâncio Lopes: Nunca houve um guião para este documentário. Se o fizéssemos, iríamos limitá-lo. Estávamos a acumular imagens deles e nossas num disco externo, mas que não estavam a ser olhadas. Não havia essa preocupação. Havia as entrevistas, mas não havia uma linha a seguir. Isso era o que íamos seguir à posteriori.

Sofia Palma Rodrigues: Nós queríamos que o filme respondesse à pergunta deles, sobre o que é ser jovem na Zona J. Tínhamos uma lista de pessoas que eles consideravam importante entrevistar. A partir daí, foi-se desenrolando, com material captado com telemóveis, câmaras, máquinas fotográficas.

Esse material foi recolhido ao longo de três anos, até meados de 2019. Como é que vocês chegaram ao ponto em que disseram, ‘ok, já temos o que precisamos’?

Ricardo Venâncio Lopes: Nesses três anos, eles deixam de ter 15-16 anos e passam a ter 18-19. Estão todos praticamente a trabalhar e nós sentimos que este projecto tinha de terminar. Aí, o que fizemos foi apontar o que nós tínhamos e o que nos faltava. Ficou-nos a faltar uma entrevista a um agente da polícia…

Sofia Palma Rodrigues: …que foi ideia do Sandro.

Sandro Santos: Sim, eu gostaria de saber o que um agente pensa antes de vir [ao bairro]; o que esperava ele receber e também o que é que os jovens esperam receber dele. Seria uma partilha de ideias.

Já vi e senti essa má recepção de um polícia. Queria saber por que é que agem assim. Se ele tem filhos, por que é que age assim com os filhos dos outros?

Sofia Palma Rodrigues: Telefonámos, enviámos vários emails e chegámos a obter uma resposta de que não estavam disponíveis para dar essa entrevista.

“Tenho um grande carinho e orgulho em ser de Chelas. Sinto isso genuinamente”

— Ana Rita Andrade (Bataclan 1950)

Sendo que foi o Bataclan a reunir a maior parte do material do documentário, este torna-se numa viagem singular pela Zona J através do olhar dos próprios jovens locais. Que impacto gostariam que Chelas Nha Kau tivesse nas pessoas e nos preconceitos que existem em torno da Zona J?

Sandro Santos: Eu ficava contente se o documentário aparecesse nos principais canais portugueses para que [as pessoas] tenham uma outra ideia da Zona J; para que as pessoas que passam aqui nos autocarros não tenham receio de olhar lá para fora; para que as pessoas olhem para os miúdos como pessoas que, tal como as outras, têm objectivos na vida; miúdos que têm capacidades mas que não têm oportunidades.

E gostaram do resultado final? Sentem-se representados com honestidade em Chelas Nha Kau?

Sandro Santos: Do que vi, gostei. Eu não gosto de ser o centro das atenções e acabei por ser. Como já percebeste, eu gosto de ser papagaio. Gosto de dar a minha opinião. No meio desta malta toda, considero-me a cabeça. Sei que se falar um pouco alguém ali vai apanhar [o que eu disse], vai para casa pensar e se calhar depois diz, ‘aquele maluco tem razão’. E mais tarde vejo o progresso a acontecer. Eu não canto, mas actualmente tenho o sonho dos meus amigos e tento concretizá-lo: vê-los a cantar num palco. Eu sei que eles têm valor.

Chelas city, capital de Lisboa‘ parece ser um mantra para vocês. Como é que descreveriam o bairro a uma pessoa que nunca o tenha visitado?

Ana Rita Andrade: Não reconheço que seja o centro de Lisboa, mas fica no meio dos pontos mais influentes, como Terreiro do Paço, [Ponte] Vasco da Gama… Nós somos mesmo um bairro da cidade, é mesmo diferente. Não conheço outro bairro como Chelas. Toda a gente reconhece isso quando aqui entra. E se não formos nós a reconhecer isso, também ninguém o fará.

Há uns meses li uma entrevista com o Sam The Kid onde se argumentava que estava a decorrer um processo de branqueamento de Chelas. As placas de trânsito passaram a indicar Marvila e a Zona J é na verdade Bairro do Condado. Esse processo político é visível na zona?

Sandro Santos: Actualmente acho que os políticos estão a querer lavar a cabeça das pessoas. Estão a mudar os nomes dos sítios para que não continuem com os mesmos rótulos. Se reparares, na televisão, só dizem Chelas quando é mau; quando é bom dizem Marvila. A notícia [da CMTV] dizia que éramos o Bataclan da Zona J; há pouco tempo houve aqui uma obra e apareceu Chelas-Marvila. Mas não vão conseguir mudar o rótulo. Tal como o Sam The Kid falou nessa entrevista, o nome já vem com o sítio. Tu não chegas e mudas. Está lá plantado.

Temem que a identidade de Chelas se possa perder com o avançar desse processo?

Ana Rita Andrade: Não sei se falo só por mim, mas carrego amor no meu coração por saber que sou de Chelas. Não sei se qualquer pessoa de outro lado vai sentir isso pelo sítio de onde vem, mas eu tenho um grande carinho e orgulho em ser de Chelas. Sinto isso genuinamente.

Sandro Santos: Só não morre porque as pessoas de cá são genuínas, sabem de onde vêm. Para nós não interessa a placa, mas sim o sítio de onde vens. Nós aqui somos dois representantes, mas aposto que se perguntares a qualquer pessoa que mora em Chelas se gostaria de se mudar e ela vai dizer que não.

Ricardo Venâncio Lopes: Nós não queríamos nada que o documentário tivesse esse lado institucional. Mas sobre essas alterações que tu falas, a única coisa que é perceptível no documentário é que os bairros estão a ser reabilitados. Agora, não estando no documentário, posso dizer que esse branqueamento do bairro é uma parte política que começou há mais ou menos 10 anos. A ideia é transformar a imagem do bairro porque aos poucos está a deixar de ser periférico. Há obviamente pressão económica sobre esse território.

Sofia Palma Rodrigues: As pessoas [do bairro] continuam a usar o termo Zona J porque se apropriaram orgulhosamente desse nome. Mas no endereço de correio metem Bairro do Condado.

Ricardo Venâncio Lopes: É quase como um exercício de resistência porque na realidade chamá-lo Bairro do Condado é uma construção para fora. É para uma entrevista de emprego ou sair em notícias ou vender imobiliário. Nos últimos anos tem-se construído vários prédios que já não são de habitação social em Marvila e obviamente Marvila tornou-se numa marca forte. A Câmara [Municipal de Lisboa] quer rentabilizar aquele sítio. Só à volta da Zona J, está previsto construir o maior hospital de Lisboa – e consequentemente, várias unidades hoteleiras e zonas residenciais para a Faculdade de Medicina. Isto fora a zona sul de Marvila, que tem, neste momento, os empreendimentos mais caros de Lisboa.

Sofia Palma Rodrigues: Podemos dizer que de alguma forma a pandemia travou esse processo, mas estou em crer que a Zona J não iria ficar imune se as coisas continuassem no mesmo fluxo de despejos que vimos noutros bairros.

Ricardo Venâncio Lopes: Normalmente as pessoas pensam que Chelas no seu todo é um bairro social. Mas não é verdade. Cerca de 60% das casas são uma parte do Estado e outra municipal, mas há um número grande de casas que o estado foi entregando às pessoas. O que acontece é que essas casas estão no mercado. Se valorizares o terreno, se mudares o nome, se deixar de ser o bairro social e passar a ser o Bairro do Condado, ele tem muito mais valor económico. O foco do documentário não era esse, mas essa preocupação existe em Chelas. As pessoas começam a ter receio. Aliás, isso foi-nos dito, temos material nesse sentido.

“Não é pelos outros acharem que o bairro é uma coisa diferente que ele vai passar a ser essa outra coisa”

— Ricardo Venâncio Lopes (Bagabaga Studios)

Podemos olhar para Chelas Nha Kau como o último grande registo documental da Zona J tal como a conhecemos?

Sandro Santos: Daqui a 10 anos vai haver outro maluco que vai falar de N coisas como eu falei. Por isso, se houver pessoas como a Sofia, o Ricardo e outros para vir à zona aproveitar esse pouco que temos para dar, acredita que vais ver N documentários sobre Chelas.

Ricardo Venâncio Lopes: Acho que [o documentário] não vai marcar um momento de viragem. Há um orgulho em o bairro ser o que é. Estas pessoas vão continuar a morar ali. Uma pessoa que more em qualquer outra zona da cidade tem orgulho na sua terra, na sua zona, porque acima de tudo criamos afeições onde criamos as nossas relações pessoais, as nossas memórias, a nossa vida. Portanto, não é pelos outros acharem que o bairro é uma coisa diferente que ele vai passar a ser essa outra coisa. Acho que há interesse político em mudar algumas coisas…

Sofia Palma Rodrigues: …mas a resistência é forte.