Justiça por Danijoy: as fotografias da manifestação pela lente de Carlos Alvarenga

Fotografias por Carlos Alvarenga

Foi há uma semana – a 6 de Novembro – que centenas de pessoas se concentraram à porta do Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), munidos de cartazes e muita revolta, para exigir justiça por Danijoy Pontes.

Danijoy, de 23 anos, cumpria uma sentença de seis anos por furto de telemóveis no metro quando faleceu naquele estabelecimento prisional ao início da manhã de 15 de Setembro. Segundo o EPL, Danijoy morreu durante o sono e, mais tarde, a autópsia do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) concluiu que esta se deveu a causas naturais. Para o Ministério Público, o resultado da autópsia foi suficiente para mandar arquivar o inquérito à morte de Danijoy, ainda que em desrespeito dos procedimentos legais. Em Portugal, aquando de uma morte num estabelecimento prisional, manda a lei que o MP abra um inquérito e solicite uma investigação da Polícia Judiciária – o que, neste caso, nunca aconteceu. Semelhante trato foi dado ao recluso Daniel Rodrigues, de 37 anos, que menos de uma hora antes faleceu de “AVC” na mesma Ala D (embora numa cela diferente) em que se encontrava Danijoy.

Para a família de Danijoy (que participou na manifestação), o facto de o MP não ter pedido uma investigação sobre a morte do jovem levanta suspeitas sobre o que realmente sucedeu naquela manhã de Setembro. Entretanto, foram encontradas diversas contradições entre a autópsia e uma avaliação psicológica realizada pelo mesmo INMLCF no mês de Julho deste ano. Até hoje ainda não foram dadas respostas às dúvidas que ensombram a morte de Danijoy, o que motivou não só a sua família, mas também activistas anti-racismo e cidadãos comuns a marchar por Lisboa para reivindicar uma investigação séria sobre esta tragédia e gritar em uníssono por uma sociedade liberta de racismo.

Carlos Alvarenga, fotógrafo de 33 anos, esteve presente na manifestação e documentou o ambiente da marcha desde o EPL até à Praça do Comércio. O que se segue é um relato em imagens e na primeira pessoa sobre o evento.

(Nota: Entretanto, o MP reabriu os inquéritos sobre as mortes de Danijoy e Daniel Rodrigues. É o grito das ruas a revelar os seus efeitos.)

— Ricardo


A manifestação de apoio à família do Danijoy começou à porta do Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL). Ali houve algumas intervenções da mãe, do irmão e do pai do Dani, mas também de outras figuras como Mamadou Ba [Dirigente da SOS Racismo], Cristina Roldão [Socióloga] e ‘Sinho’ [José Baessa de Pina, da Associação Cavaleiros de São Brás]. Dali fomos até ao Marquês de Pombal, de forma pacífica, sempre a gritar palavras de ordem a reivindicar justiça [por Danijoy]. Depois descemos a Avenidade da Liberdade até à Praça do Comércio. Aí abriu-se uma roda com todos os manifestantes, as tarjas, as mensagens sobre a injustiça que foi a morte do Dani, e deram-se mais algumas intervenções a relembrar outras vítimas de racismo em Portugal – como a Cláudia Simões e o Bruno Candé. A grande mensagem da manifestação era que não se trata apenas do caso do Danijoy: há muitos outros que ficam por resolver e nós continuamos a fazer estas marchas pacíficas para apelar à luta contra o racismo e procurarmos uma resolução para esta injustiça.

Uma das minhas motivações para estar presente foi o facto de o meu irmão mais velho e amigos meus terem estado presos no EPL há uns anos. Senti-me, por isso, solidário com o caso do Danijoy porque podia ter acontecido ao meu irmão. A minha presença deveu-se tanto à luta por justiça, racial mas também por ter sido junto àquela prisão em específico.

O meu irmão falava-me sobre o tratamento dos guardas prisionais com os encarcerados, como tinham comportamentos abusivos e agressivos. Os guardas prisionais, que fazem sobretudo um serviço de vigilância, exercem poderes semelhantes à polícia quando nem o são – e se a polícia nem se devia comportar como comporta, então quando guardas prisionais o fazem a situação é ainda pior. Outra coisa de que o meu irmão falava era de como a comida era horrível e como tinha a sorte de a minha mãe lhe levar sempre comida. Dos relatos que ouvia dele e de outros amigos, percebia que existe naqueles lugares muita privação da dignidade humana – algo que acho que todo o ser humano merece. São tudo histórias que ouvia muitas vezes e quando assim é, mesmo sem as confirmar, é porque não é à toa que quem passou por elas fale do assunto.

A manifestação era sobretudo anti-racista, mas acho que nunca vi uma manifestação em que houvesse tanta diversidade racial. Havia ali uma mistura de várias etnias. O ambiente geral era de revolta, fizemos imenso barulho desde o Estabelecimento Prisional de Lisboa até à Praça do Comércio. Gritamos para nos fazermos ouvir e para que as entidades responsáveis sintam a nossa revoltam e percebam que estamos a sofrer [por causa do racismo]. Ao mesmo tempo, da forma que vejo, quando gritamos por justiça, estamos a gritar aos céus para que aqueles que morreram nesta luta [anti-racista] possam ouvir e perceber que aqui em baixo estamos a tentar mudar as coisas.

A revolta contra o racismo continua a ser a mesma. Mas cada vez mais, quem não sente directamente na pele o que é a injustiça racial, começa a perceber qual é a nossa luta. Não é uma luta de brancos contra negro; a justiça racial é uma luta dos anti-racistas contra os racistas porque o racismo mata. As pessoas que não são negras ou africanas começam a compreender cada vez melhor as histórias que nós contamos, porque são recorrentes. Depois, tendo amigos que são africanos, começam a sentir cada vez mais de perto a injustiça racial que existe e daí entrarem nesta luta para que o racismo possa acabar.

Da minha parte, tenho estado sempre presente nas manifestações anti-racistas que aconteceram nos últimos tempos. E a isso junto a fotografia não só pelo gosto, mas também pela importância que tem para mim que aquilo fique registado. É-me muito importante captar todos os pormenores destes eventos, também para termos controlo sobre a narrativa que se faz em relação a estas intervenções. Os principais meios de comunicação fazem muitas vezes a cobertura destes eventos e pela sua influência acabam por controlar a narrativa. E muitas vezes manipulam a informação sobre aquilo que realmente acontece nas manifestações, procuram impor uma conotação negativa sobre elas. É por isso que procuro captar todos os detalhes para mostrar o que realmente aconteceu. Quando uma manifestação termina, o que fica são as memórias das pessoas e a fotografia e através desta uma pessoa quase pode viajar e rever tudo o que aconteceu. E pelas fotografias que aqui vês – da primeira à última –, consegues perceber que foi tudo pacífico.

Sobre o tema da manifestação em si, o que gostava de ver mudar era a formação que é dada às forças de segurança, que fosse mais intensa e fossem avaliados a nível psicológico. A minha ideia é que há muitos polícias e guardas prisionais completamente despreparados para exercer as suas funções. Repara no caso da Cláudia Simões: aquele polícia nunca deveria ter uma postura daquelas com um cidadão ou cidadã. E como ele há muitos outros que não sabem como reagir às situações que encontram. Sempre vivi em bairros sociais e a minha percepção é que as forças de segurança destacadas para os bairros são diferentes das destacadas para outras zonas. Isso é um tipo de segregação, de divisão, porque esses polícias têm uma atitude diferente nos bairros. Nós, os negros, somos muitas vezes tratados de forma abusiva. Tenho a certeza que se a Cláudia Simões fosse branca, ela não teria sido tratada assim.

Espero que nestas fotografias as pessoas vejam a união que houve ali – a união contra o racismo. É importante registar estas intervenções uma, duas, três vezes para que vejam que lutamos sempre pela mesma causa e que, por isso, talvez seja hora de mudar alguma coisa. Infelizmente, a discriminação racial acontece há séculos. Mas ver aquela união e solidariedade acaba por ser uma vitória: mostra não são só os negros que estão a lutar contra o racismo.