A tensão de um protesto pelos direitos civis dos negros. As simbólicas torres gémeas que desapareceram do horizonte de Nova Iorque. Um guerreiro que não segura as lágrimas perante um companheiro caído no terreno de combate. Um fotógrafo que, depois de lutar contra a ansiedade e depressão, volta finalmente a pegar na câmara.
O que é a fotografia documental senão um registo da história informada pelos eventos marcantes que transformam o mundo como o conhecemos, seja na sua dimensão global, local ou até pessoal? Foi a partir desta reflexão que a mais prestigiada comunidade de fotógrafos do planeta, a Magnum Photos, em conjunto com a The Everyday Projects, criou a iniciativa “Turning Points“, um mercado fotográfico repleto de imagens icónicas da história moderna.
Reunindo mais de uma centena de fotografias, as imagens foram seleccionadas por fotógrafos de renome internacional e são acompanhadas por uma descrição na primeira pessoa sobre a importância destes documentos visuais não só para a memória colectiva, mas também para a dos seus autores. “Os fotógrafos, pela natureza da actividade e pela sua própria disponibilidade, estão frequentemente bem posicionados para registar os eventos que moldam o curso da história,” lê-se sobre a iniciativa no site da Magnum Photos. “No entanto, a prática fotográfica também pressupõe que as imagens reflictam as mudanças na arte e perspectivas dos seus autores.”
O SISO vasculhou a amálgama de fotografias disponíveis em “Turning Points” e seleccionou uma colecção de imagens em conjunto com as palavras dos seus autores. Esperamos que desperte a vossa curiosidade e vos inspire a documentar, quem sabe, a vida em isolamento…
BRUCE DAVIDSON
“Birmingham estava em ebulição quando fui até lá em semanas distintas para fotografar os protestos em diferentes pontos da cidade. Confrontos, desobediência civil e provocações às autoridades eram coisas nunca vistas na cidade, conhecida como uma das mais segregadas da América.
Durante as manifestações, polícias de capacete algemavam pessoas nas ruas enquanto os bombeiros utilizavam canhões de água para dispersar a multidão que se fazia ouvir pacificamente em Kelly Ingram Park. Havia tensão e violência.
Quando esta jovem mulher foi detida pela polícia, reparei na expressão de afronta às autoridades no seu rosto. Para mim, é uma verdadeira heroína do movimento.”
JONAS BENDIKSEN
“Tirei esta fotografia há exactamente 20 anos. Sem saber, registei uma imagem que viria a ser a mais publicada de todo o meu arquivo. Aquele cenário mágico com milhares de borboletas, um céu tempestuoso, os destroços do foguete espacial russo Soyuz e dois locais, colectores de metal, deram um impulso à minha carreira, dando-me confiança na minha visão.
Esta imagem também me criou imensos problemas – fui deportado da Rússia pouco tempo depois da publicação da história sobre as consequências dos lançamentos espaciais russos. A interdição no país conduziu-me ao meu primeiro livro, ‘Satellites’, que apresentava imagens das regiões isoladas e fronteiriças da antiga União Soviética. As borboletas, claro, figuraram na capa.”
BRUNO BARBEY
“Esta fotografia mostra diversos oleodutos a arder, destruídos aquando da retirada dos soldados iraquianos durante o incêndio do campo petrolífero de Ahmadi, no sul do Kuweit, a 1 de Abril de 1991. Depois de sete meses de ocupação, as tropas iraquianas destruíram e incendiaram 727 oleodutos, poluindo gravemente a atmosfera e criando lagos de petróleo. Mais, cerca de oito mil milhões de barris de petróleo foram despejados para o mar pelas mesmas forças iraquianas, contaminando a vida marinha e as áreas costeiras numa distância de 400 quilómetros.
A fotografia foi publicada na TIME, bem como numa edição especial da Life Magazine cujo destaque era os eventos de 1991. Depois da publicação, recebi várias cartas de alguns dos Marines que aparecem na foto e que participaram na libertação do Kuweit.”
BRUCE GILDEN
“1969. Dois anos antes, peguei na minha primeira máquina fotográfica – a Miranda. Nesse ano comecei a fotografar em Coney Island para o meu primeiro longo ensaio. Passei imenso tempo a observar o máximo de fotografias possível à procura daquilo que visualmente me interessava e de uma direcção para a minha fotografia.
Esta foi a primeira das minhas fotos que senti que tinha credibilidade artística. Fiquei super feliz por ter atingido algo que me deixava orgulhoso. Mesmo que todas as minhas fotografias não tenham título, chamo a esta afecciosamente ‘Fellini’.”
CRISTINA DE MIDDEL
“Em 2013 fui convidada a viajar ao Dakar para colaborar com a jovem e talentosa designer senegalesa Selly Raby Kane. Ela tinha criado uma colecção inspirada em Afrofuturismo que nos permitiu explorar, num contexto de moda e em território africano, novas possibilidades em correlação com meu então recém-lançado projecto ‘Afronauts’. Com o meu conhecimento limitado sobre a indústria da moda, a sessão acabou por se tornar num novo capítulo de uma série que explorava as ligações universais entre os seres humanos e os cosmos, além de contextos de raça e experiências de vida.”
RENÉ BURRI
“Sabia eu que aqueles homens estavam ali quando tirei a fotografia? Não. Subi lá acima por pura curiosidade. Recordo-me do elevador que me levou ao telhado. Os edifícios não tinham seguranças naquela altura; não tinham guardiões como nos dias de hoje. Era uma questão de subir lá acima, bater à porta e dizer, ‘Excuse me. Excusez-moi, est-ce que je peux faire une photo? Desculpe-me, posso tirar uma foto?’ ‘Sim, sim, entre!’ Então fui ao terraço e naquele momento aqueles homens surgiram do nada e eu tirei cinco fotografias.”
THOMAS HOEPKER
“Os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 foram sem dúvida o evento histórico mais significativo em décadas recentes. E agora estamos no meio de outra crise global bastante mais severa que afecta as nossas vidas e que terá consequências nos próximos anos.
Tenho reflectido muito sobre esta imagem que registei naquela manhã fatal nas margens do East River, com o fumo que se elevava após a queda das torres gémeas. Eu estava a passar de carro quando vi um grupo de pessoas aparentemente a relaxar ao sol. Disparei algumas vezes e segui o meu caminho. A imagem, registada numa fracção de segundos, acabou por se tornar controversa. Documentava uma pequena fatia da realidade sem interferir com o comportamento ou linguagem corporal das pessoas. Mas para muitos observadores, críticos e especialistas, também se tornou num símbolo de esperança, sugerindo que a vida continuará o seu rumo; que somos fortes e que ultrapassaremos a tragédia. Estou confiante que o mesmo acontecerá durante a actual pandemia global do coronavírus.”
NANNA HEITMANN
“Durante menos de um segundo, dois atletas encontram-se perto um do outro. Os seus olhos estão fechados, as suas cabeças repousam no ombro um do outro, como se se abraçassem pacificamente. Tentei registar este momento antes do início da luta, do aparato de empurrões para a trás e para a frente. Esta fotografia mostra duas figuras a treinar khuresh, um género de luta livre e desporto nacional na república de Tuva, estado parcialmente reconhecido no sul da Sibéria. As gentes de Tuva criam sagas e lendas sobre os seus atletas favoritos, atribuindo-lhes qualidades sobrenaturais.”
WISSAM NASSAR
“Esta imagem representou um ponto de viragem na minha carreira numa altura em que as minhas fotografias de guerra foram vistas globalmente por milhões. Trabalhei no enclave costeiro de Gaza nos últimos quinze anos. Vi de tudo, vivi uma vida cercada por guerra e reconstrucção. Mas percebi que as minhas fotografias mais autênticas eram aquelas que retratavam momentos subtis de descompressão.
A minha inspiração para documentar a turbulência em Gaza começou nos tempos de faculdade. No início da minha carreira profissional, cobri as três guerras de Israel contra o Hamas em 2008, 2012 e 2014, bem como a Primavera Árabe. Preocupo-me em mostrar como as pessoas querem viver uma vida normal, passar tempo nos parques, praias e cafés apesar dos destroços espalhados por toda a parte.”
NIKOS ECONOMOPOULOS
“Espaços liminares, fronteiras, encruzilhadas, pontes, pontos de viragem, são o meu local de trabalho: tudo aquilo que não está confinado, delineado e restrito, mas sim fluido, aberto e infinito. Quando o imprevisível ocorre, dilemas emergem; emoções revelam-se em plenitude.”
CHRIS STEELE-PERKINS
“Esta fotografia representa um momento de viragem para mim na medida em que durante alguns anos após este registo, a imagem não foi muito utilizada ou comprada, mas gradualmente, ao longo de tempos mais recentes, tem emergido como uma das minhas fotografias mais populares.”
NEWSHA TAVAKOLIAN
“Um casal iraniano observa o lago salino de Urmia no noroeste do Irão. Nesta altura, o lago estava a secar e parecia estar a morrer, impossível de salvar. Mas depois de chuvas inesperadas no ano passado, os níveis de água subiram e afinal o lago pode permanecer vivo durante mais uns tempos.”
JACOB AUE SOBOL
“Depois de três anos de uma devastadora depressão clínica, aos poucos consegui sair do buraco negro. Mudei-me da cidade para uma zona rural. Passei de fotógrafo a pescador. Deixei de olhar para o mundo e passei a fazer parte dele. Cresci com as minhas plantas e comi do mar. Mais perto da natureza, mais perto da vida. Depois apaixonei-me pela Sara. Casámos e nasceu a Carmen. Agora podia tirar uma fotografia – não por medo, mas por amor.”
CHIEN-CHI CHANG
“Eles viviam a melhor das vidas graças ao pai que deixara Fuzhou para trabalhar sem parar num emprego não-qualificado em Chinatown, Nova Iorque. O sonho dele era oferece uma boa vida aos filhos. Mas a prosperidade vale o preço social? Crianças são órfãs de pai, esposas ficam sem marido e vírus espalham-se pelo mundo e tornam insignificante tudo o que possuímos.
Todos indagamos sobre o melhor para as nossas crianças e talvez a resposta se encontre na vida das pessoas que residem em ambos os lados das nossas fronteiras permeáveis. Olhem para eles. Oiçam as suas vozes. Podem não compreender a línguas deles, mas conseguem sentir a saudade que os assoma.”
PETER VAN AGTMAEL
“Tinha acabado de acordar num voo no Afeganistão quando espreitei pela janela e vi este cenário. Procurei atabalhoadamente pela câmara e tirei algumas fotografias antes da nuvem se desfazer e desaparecer de vista.
Olhando para trás, esta fotografia assinalou o momento em que compreendi que a guerra era mais profunda e mais complexa do que toda a brutalidade que eu persegui durante os dois anos anteriores. Agora, doze anos mais tarde, vejo a guerra na totalidade da sua experiência humana. Um exercício cíclico e cínico de poder, violência, ignorância e medo, mas paradoxalmente um exercício que também encarna humanidade, coragem e momentos de beleza transcendental. Estas parecem forças irreconciliáveis, embora definam a nossa perplexa espécie.”
ELLIOTT LANDY
“Capturar um momento de experiência alegre e partilhar com os outros – foi essa a razão que me levou a começar a fotografar. E é até hoje a razão pela qual ainda o faço.
Uma das coisas que mais gosto ver numa fotografia minha é encontrar algo que não tenha visto antes, daí que sempre tenha apreciado experimentar. Esta foi a motivação por trás das minhas explorações com Kodak infrared color film em finais de 1960.
Era impossível prever o resultado porque as cores das fotos dependiam das luzes infravermelhas que não são visíveis ao olho humano. Quando utilizei negativos infravermelhos, experimentei uma variedade de filtros de cor. Esta fotografia, por exemplo, foi uma verdadeira surpresa. A verdade é que nem eu nem o Bob nos apercebemos do poder e beleza da imagem quando a vimos num projector e acabámos por nem a considerar durante a nossa pesquisa por uma foto para a capa de ‘The Saturday Evening Post’. Também não me recordo se algum de nós teceu qualquer comentário sobre a fotografia. Mas é uma imagem diferente que reflecte a natureza de outro mundo da música de Dylan.”
JÉRÔME SESSINI
“Um militar Peshmerga lamenta a morte de um camarada, condutor de tanques, depois de ser assassinado por um sniper do ISIS durante uma ofensiva em Bashiqa. A minha vida pessoal e como fotógrafo influenciam-se um à outra em absoluto. A minha abordagem à guerra, e especialmente à morte, mudou depois de ter feito esta série fotográfica no Iraque. Ainda não sei de que forma se vai manifestar esta nova consciencialização, mas 2016 marcou um mudança profunda na minha fotografia, e não só.”
RAFAL MILACH
“O projecto ‘The Winners’ foi um dos pontos mais críticos para a minha compreensão do que é a fotografia e a sua interferência na sociedade. Seguir o rasto do ideal de estrutura social promovido pelas autoridades da Bielorrúsia foram o primeiro passo para que deixasse de focar espaços íntimos e desse atenção à esfera pública. Este projecto marcou o início do meu interesse nos mecanismos de controlo, manipulação e propaganda.”
ALEX WEBB
“Quando era um jovem fotógrafo, eu estava absolutamente comprometido com imagens a preto e branco. Imagens a cores era para mim vazia e comercial – não representava o verdadeiro coração da fotografia. No entanto, em finais de 1970, depois de quatro anos a fotografar na região das Caraíbas e na fronteira dos EUA com o México, apercebi-me de que algo estava em falta no meu trabalho: eu não estava a lidar com as cores intensas e luzes brilhantes destes mundo, tão diferentes da negritude de New England, de onde provenho. Daí que comecei a fotografar a cores e desde então não mais parei.
Esta fotografia num bar nebuloso em Granada – cujos vibrantes vermelho, verde e amarelo representam as cores da bandeira daquela nação caribenha – ajudou-me a encontrar o caminho. Acabou por ser capa do meu primeiro livro, ‘Hot Light/Half-Made Worlds’.”
“Turning Points” é uma iniciativa Magnum Photos que termina no dia 12 de Abril.
50% das receitas de venda das fotografias reverterão para os serviços de emergência ao COVID-19 da organização internacional Médicos Sem Fronteiras.