O grupo de surfistas que se tornou no maior distribuidor de LSD do mundo

Frames retirados de “Orange Sunshine”

Das manifestações contra a guerra no Vietname aos movimentos pelos direitos civis e liberdades sexuais, os anos 1960 foram incendiários nos EUA. A atmosfera anti-sistema era alimentada por uma geração pós-guerra que viu a promessa do American Dream escapar à realidade e, determinada a provocar um terramoto no establishment, deu expressão ao descontentamento através do activismo, da arte, música e literatura e de estilos de vida divergentes.

Na costa ocidental dos EUA, por exemplo, o surf e o psicadelismo capturaram as juventudes e deram impulso à emancipação dos movimentos hippies. Ondas e ácidos, o cartão de visita da Califórnia e arredores que perdura até aos dias de hoje. Boa parte da génese dessa subcultura teve como epicentro Orange County – ou Laguna Beach, para ser mais preciso -, região com vista para o Pacífico onde nasceu uma das organizações mais marcantes da época: a Brotherhood of Eternal Love – a Irmandade do Amor Eterno.

Durante muito tempo, a BOEL sobreviveu no imaginário histórico de Orange County como um acontecimento enigmático. William A. Kirkley, realizador e filho daquela região, recorda-se de crescer rodeado por lendas sobre a Irmandade, uma presença invisível que ainda hoje faz parte da identidade daquele lugar. O pouco que se falava sobre a organização não permitia distinguir a verdade da mais pura mitologia e para William só havia uma forma de se chegar à verdadeira história da BOEL: através dos relatos de quem realmente fez parte dela. É esta espécie de biografia oral que dá corpo ao documentário “Orange Sunshine”.

Embalado pela relação amorosa de dois co-fundadores, Michael Randall e Carol Griggs, o filme segue as peripécias de uma turma de hippies que consome os dias a deslizar nas ondas e a experimentar LSD. Dessas experiências alucinogénicas brotou a convicção de que uma prescrição de ácidos em massa seria remédio santo para transformar o mundo num lugar bastante diferente, talvez mais pacífico. É esta crença que acaba por guiar os destinos de um documentário que mostra como a BOEL viria a tornar-se no principal distribuidor de drogas psicadélicas nas décadas de 1960 e 1970.

Premiado em festivais de cinema como o SXSW, San Francisco Doc Fest, Newport Beach Film Festival, “Orange Sunshine” completa este ano o seu 5º aniversário. Motivo para reavivarmos esta conversa com o realizador onde se aborda o processo de criação do filme, a cinematografia que mistura a realidade com ficção e a infame war on drugs que se seguiu àquele período de experimentação.


Demorou algum tempo a convencer Michael e Carol a participarem no documentário. O que é que os fez mudar de ideias?

Quando comecei a trabalhar no “Orange Sunshine”, aprendi depressa que o Mike e a Carol era considerados os líderes da Brotherhood of Eternal Love, e que grande parte da história que se desconhecia tinha que ver com eles. Eles são muito privados, vivem uma vida completamente diferente do seu passado numa pequena aldeia no norte da Califórnia. Não queriam ter nada que ver com a história.

Então fui à procura de outras pessoas que estiveram envolvidas com a Irmandade. Durante sete anos, fiz 25 entrevistas incluindo a membros originais da BOEL, a geração que se seguiu e elementos das forças de segurança. Mas durante todo aquele tempo, continuei a falar com o Mike e a Carol e a construir essa relação. A certa altura, disse-lhes que tinha o filme quase pronto, mas que a história era na verdade a história deles e que se decidissem aceitar contá-la, eu fazia reset e começava de novo. E foi isso que acabou por acontecer.

Deve ter sido extenuante e emocionante ao mesmo tempo porque no final conseguiste a história que desejavas. Qual foi a reacção deles ao filme?

Fui a casa deles mostrar-lhes uma versão ainda por limar antes da estreia no SXSW. Nem te consigo explicar o quão nervoso estava pela reacção deles. Eles têm tantas histórias incríveis e eventos marcantes nas suas vidas que não conseguimos encaixá-las em 90 minutos. Eram precisos muitos mais.

Para eles, ver o documentário foi uma experiência muito emocional, houve muitas lágrimas de alegria e nostalgia. Quando terminou, abraçaram-me uns bons 15 minutos. Por vezes, os protagonistas dos teus filmes podem ser a audiência mais dura, mas depois disto fiquei extasiado por eles sentirem que finalmente a sua história foi contada correctamente.

Carol Griggs e Michael Randall nos dias de hoje

À medida que Michael e Carol foram desvendando a história deles, sentiste que a ideia inicial que tinhas para o projecto se foi alterando?

Inicialmente era para ser a história sobre como, a partir da vila adormecida de Laguna Beach, se tornaram nos maiores distribuidores de LSD e haxixe do mundo, como foram as suas aventuras no tráfico de droga. Mas o que aprendi ao longo das entrevistas é que a história tinha mais que ver com relações pessoais, com famílias e bons amigos que acreditavam que podiam mudar o mundo.

Eles eram uns radicais que não tinham qualquer interesse em lucrar com aquilo ou adquirir bens. Só queriam que o mundo fosse um sítio melhor. Somas isso à história de amor do Mike e da Carol e tens uma história sobre droga e amor que é bastante mais interessante e única.

Visto que Michael e Carol estiveram relutantes em participar no filme, qual sentes que foi a tua responsabilidade para com os protagonistas na forma como depois juntaste as peças todas?

Desde o início que fui muito cauteloso para não glorifica o consumo de drogas no filme. Nesse aspecto, sinto que tinha uma responsabilidade. Apesar de discordar da war on drugs na América, também houve muitas fatalidades devido ao consumo de droga e era importante para mim sublinhar isso no filme. Aliás, uma das personagens-chave do documentário faleceu devido a consumo de droga e isso foi algo que garanti que não embelezava.

Muitas pessoas em certas idades vão experimentar drogas e, no limite, sinto que histórias como esta tornarão mais fácil debater estes assuntos. Uma comunicação aberta é a ferramenta mais eficiente para se ser responsável.

Há uma componente ficcional no documentário através de actores que interpretam os relatos dos protagonistas. O que é que te motivou para esta abordagem?

O facto dos protagonistas terem sido traficantes de droga fez com que raramente permitissem mostrar os seus rostos. Também não havia imagens daquela altura. Então, decidi que a melhor forma de compor visualmente as histórias deles seria através de filmes caseiros em Super 8 gravados com actores vestidos com a moda da época e carros vintage para que a experiência fosse o mais autêntica possível. Há momentos, à medida que oiço as histórias deles, em que visualizo aquilo tudo como se fosse um filme e não me quis limitar apenas porque estava a criar um documentário. Sabia que aqueles momentos mais ‘cinematográficos’ iriam encaixar no filme.

Mencionaste que houve imensas histórias que ficaram de fora do filme. Alguma em particular que aches interessante para nos contar – ou que tenha acontecido durante as entrevistas?

Há tantas histórias incríveis, mas há uma delas nos bastidores que se destaca. Há uns anos, viajámos do Nepal para os EUA com um elemento da Irmandade que tinha vivido durante mais de 30 anos como monge budista num mosteiro. Ele chegou mesmo a fazer – e cumprir – um voto de silêncio durante 20 anos. O que não esperávamos é que, à chegada a São Francisco, ele fosse detido devido a um mandado de captura ligado às acusações formais contra a Irmandade em 1972.

[A chegada dele à América] fez manchetes pelo mundo. Isto aconteceu antes do Mike e da Carol aceitarem fazer parte do filme e muitos dos outros protagonistas acharam que nós tínhamos montado esta trama para o filme.

O homem enfrentava prisão perpétua sem direito a liberdade condicional. Foi devastador para todos na altura. Eventualmente, serviu seis meses na prisão e, pouco depois de ser libertado, regressou ao Nepal. Não incluímos a história porque é merecedora de um filme por si só e nós estávamos mais interessados em contar uma história de amor. Quem sabe se um dia não será contada.

Michael Randall nos anos 60

O surf teve uma ligação profunda com os movimentos hippie e psicadélicos nos anos 1960. O que é que a Irmandade via no surf que se relacionava com o estilo de vida que idealizavam?

Todos os membros da Irmandade cresceram perto da praia no sul da Califórnia. Ou seja, logo em miúdos foram expostos à cultura surfer e de praia – com as longboards, os Beach Boys e malta como Miki Dora. Foram parte da transformação que estava a acontecer no surf, em que deixou de ser um tipo de desporto para meninos bonitos e passou a adoptar a experimentação, os cabelos compridos e pranchas mais pequenas.

Eles tinham por hábito tomar ácido e ir surfar, chamavam a isso Christ in the Curl [que se traduz em algo como Cristo na onda]. Há um termo que os surfistas usam que creio que originou na Costa Rica: pura vida – porque há qualquer coisa no surf que nos coloca em sintonia com a Terra e a natureza. É meditativo e tem um impacto na consciência, pelo que está completamente alinhado com o despertar espiritual que a Irmandade e outras pessoas procuravam através do LSD.

“Orange Sunshine” é então sobre amor, paz e experiências espirituais. Mas hoje em dia, a sociedade tem uma relação muito diferente com as drogas. Tornou-se mais tensa e frágil e com consequências devastadoras. Qual é a tua opinião sobre este assunto?

Acho que não podemos colocar todas as drogas no mesmo patamar. O álcool teve na sociedade resultados bastante mais significativos do que muitas drogas que andam por aí. Creio que nos EUA perdemos a guerra contra as drogas, e essa guerra teve um impacto muito mais negativo do que positivo. Há estudos recentes que aparentemente revelam os benefícios das drogas psicadélicas na nossa saúde. É positivo que os cientistas estejam novamente a estudar estas drogas, 40 anos depois de terem surgido em massa.

Carol Griggs e os filhos

De que modo é que sentes que “Orange Sunshine” contribui para o debate da legalização das drogas psicadélicas?

Nunca imaginei que o documentário tivesse qualquer impacto em termos legislativos. O meu objectivo era simplesmente explorar as incríveis histórias da Brotherhood of Eternal Love e da relação amorosa de Mike e Carol. Acho que é importante reflectirmos sobre o consumo de drogas, o seu impacto, e abrir a porta a debates que mostrem os prós e contras. A war on drugs falhou redondamente e haverá sempre jovens adultos que vão experimentar drogas. Acho que é melhor criar-se um ambiente educativo e que permita a comunicação aberta sobre o tema.

Enquanto local de Orange County, que percepção tens da região nos dias de hoje comparando com as memórias que os membros da Irmandade têm desse lugar?

Quanto era miúdo, muitas das secções de Orange County permaneciam iguais aos anos 60 e 70. Laguna Beach tinha uma energia mágica. Não é um termo que costumo utilizar, mas há algo de realmente especial naquele lugar e ainda hoje consegues sentir isso. Acredito que a Irmandade teve um papel nessa energia. Laguna Beach é uma pequena vila de praia repleta de artistas e outsiders, eucaliptais e uma aragem salgada. Ainda que Laguna Beach e Orange County tenham evoluído nos últimos anos, ainda é possível encontrar resquícios escondidos desse passado.

A Brotherhood of Eternal Love ainda vive na memória dos californianos? Ainda se ouve falar da Irmandade?

É algo que ainda é sussurrado, particularmente em Orange County. Mas isto tem mudado devido ao filme. Agora as pessoas vêem o Mike, a Carol e outros membros da Irmandade falar sobre algo que muita gente não se atrevia a mencionar. Achei fascinante a existência desta história obscura na região, uma história que as pessoas tinham medo de mencionar. Há um dizer em Laguna que é do género, “se te recordas, não estiveste lá”.

Tanto Michael como Carol ainda acreditam que a mudança que desejavam para o mundo vai eventualmente acontecer?

Eles acreditam que vamos ver acontecer uma nova revolução psicadélica. E com o renovado interesse nesta matéria no últimos anos – desde os ensaios clínicos aos projectos sobre produção de drogas psicadélicas -, talvez testemunhemos essa segunda vaga.


Uma versão desta entrevista foi publicada na Staf Magazine.