Fly Anakin, Pink Siifu e a nostalgia dos universos imaginados do hip-hop

Fotografias por Jack McKain

Pink Siifu e Fly Anakin estão num carro alugado a rondar o famoso bairro Bed-Stuy, em Brooklyn, quando atendem o telefone. “Como é que está Nova Iorque?”, pergunto. “Fria, temos tido imenso frio,” conta Fly. “Está a nevar deste lado dos Estados Unidos.” Uma tempestade de Inverno lançou um manto branco sobre a região leste norte-americana no início de Fevereiro, altura em que ambos se reuniram na cidade para promover “FlySiifu’s”, o primeiro long play em que colaboram. Desde a edição em finais de 2020 que Fly Anakin e Pink Siifu andam a correr de um lado para o outro a promover este trabalho. A pandemia deu cabo dos planos para umas festas, mas nem por isso os impediu de espremer novos vídeos e até uma versão deluxe do projecto. Para eles, apesar das circunstâncias, o importante é celebrar “FlySiifu’s” – mesmo que isso signifique enfrentar os elementos e o vírus. “Nem acredito que ainda não apanhámos Covid,” confidencia Pink Siifu. “Mas o show tem de prosseguir. Estamos a fazer imensas cenas, temos andado super ocupados.”

É interessante que a conversa coincida com a passagem destes artistas por Nova Iorque. Nenhum deles reside na cidade – convergiram ali via Los Angeles (Siifu) e Chattannoga, Tennesse (Anakin) -, mas o encontro invoca por si só o processo de criação de “FlySiifu’s”, projecto moldado na estrada, on the move, em cidades como Los Angeles, Nova Iorque ou Richmond, no Estado da Virginia. Assim aconteceu por decisão consciente, e não por uma qualquer limitação material ou de tempo. Logo à partida, firmaram o objectivo de só avançar com o álbum quando pudessem estar fisicamente no mesmo estúdio.

“Nós não queríamos enviar faixas de som de um lado para o outro por email,” explica Fly Anakin. “Estando no mesmo espaço faz com que nenhum de nós se arme em superior ao outro. O que fazíamos era procurar um beat que gostássemos e depois dedicávamos uns 30 minutos à escrita. Entretanto ia um gravar, depois o outro e boom. Nunca definimos tópicos para as músicas. Escrevemos sobre o que quer se seja. O que acontecer, acontece. Se eu curtir [da escrita dele], então vou dar seguimento. Na minha mente, isto não passa de uma música. Por isso, tento não pensar demasiado sobre o assunto.”

“Sinto que todos os gigantes [do hip-hop] criaram universos e nós quisemos fazer o mesmo – levar o pessoal para outro lugar”

— Pink Siifu

É uma dinâmica particular tornada possível através de uma amizade genuína – quase familiar – forjada ao longo dos anos. Em “FlySiifu’s”, há uma energia daqui-até-à-morte entre dois amigos que simplesmente se divertem a trocar umas rimas sobre fumar erva, persistir na correria até ao topo e sobreviver à experiência negra americana.

Com o decorrer da nossa conversa, é também perceptível a honestidade que orienta a relação entre ambos, não muito diferente daquela que podemos encontrar em dois miúdos que cresceram na mesma rua e se conhecem desde sempre. Só que Fly e Pink apenas se conheceram pessoalmente há uma mão cheia de anos, ironicamente durante um gig em Nova Iorque, e já depois de estabelecerem contacto nas redes sociais.

“Certas relações não se traduzem dos telefones para a vida real,” contempla Fly. “Às vezes as pessoas não são quem dizem ser. Mas ele foi exactamente o mesmo gajo. Há toda uma química inesperada entre nós que não sei de onde vem, mas esta merda está mesmo a acontecer.”

“Somos amigos a sério, conhecemo-nos muito bem,” acrescenta Pink. “Adoro este gajo e há amizade e amor reais neste álbum.”

Fly Anakin conta que foi nas semelhanças entre as “histórias de infância e vida” que ambos encontraram pontos de comunhão. E prossegue com o relato de como cresceu num ambiente de abusos familiares em Richmond, como o pai amealhava sustento no mercado da droga enquanto a mãe cuidava dele e dos dois irmãos. Por outro lado, Pink Siifu recorda a infância em Birmingham, Alabama, através da perda de vários familiares, vítimas de doença ou de violência. Durante o ensino básico, mudou-se para a cidade de Cincinnati, Estado do Ohio, mas para além do cenário, pouco mais se alterou – foram muitos os companheiros que viu cair nas malhas do sistema prisional ou a desaparecer nas ruas.

“O pai do Siifu andava sempre a girar por aí; o meu vendia droga e merdas do género,” conta Fly. “Não fui forçado a entrar nessa realidade, mas assisti com os meus olhos. Então fizemos a escolha de não sermos como os nossos pais e acho que é daí que vem [a nossa união]. A juntar a isso, curtimos fumar erva juntos.”

Quando indago sobre as primeiras experiências no universo da música, a história é outra. Pink Siffu, por exemplo, tem raízes musicais provenientes da família – o avô foi uma figura respeitada na cena jazz nigeriana das décadas de 1970 e 80, enquanto o pai nutriu uma paixão pelo safoxone. Talvez por isso não surpreenda que Pink se tenha alistado na banda da escola em miúdo, onde tocou trompete e percussão. Mais tarde, aos 17 anos, interessou-se por poesia graças a uma namorada, fanática de 2Pac. A dedicação ao rap surgiu algures pelo caminho.

Pink Siifu e Fly Anakin

Por contraste, Fly Anakin, sem artistas na família, mergulhou na música através da colecção de cassetes do irmão mais velho. “Foi ele que trouxe hip-hop à minha vida,” conta. “Deu-me a escutar Wu-Tang, DMX, Nas ou Jay-Z, Big Pun ou Big L.”

Houve também um tio que, sem o saber, lhe deu um empurrão para apostar as fichas num futuro como rapper. “Por altura da terceira classe, eu era um grande fã do Bow Wow. Mas um dia o meu tio virou-se para mim e disse, ‘isto é uma merda, não é suposto escutares isto’. Então trocou o meu CD pelo ‘Ready to Die’ [do Biggie]. Foi aí que percebi que queria tornar-me num rapper e passei a dar tudo por isso.”

E deu mesmo – com uma apreciável atitude do it yourself e o suporte de uma comunidade de artistas locais. Com uma turma de rappers e produtores do Estado da Virginia, Fly fundou o colectivo Mutant Academy e lançou uma série de mixtapes com membros do grupo. Só no ano passado é que se apresentou a solo, com o álbum “At The End of The Day”

Fly e Pink podem ter percorrido caminhos distintos na música, mas ao cruzarem-se aperceberam-se que as referências que traziam dos anos de formação eram as mesmas. As referências eram os heróis do passado e presente que deram vida a universos imaginados e que por isso serviram de bússula para o conceito de “FlySiifu’s Records & Tapes”, a loja de discos fictícia que dá corpo ao álbum.

No vídeo do single “Mind Right” dá-se a viagem a esse espaço imaginado: ali, somos espectadores de um dia na vida de Fly e Pink, empregados de uma loja de discos localizada no preciso espaço onde um dia Ras G encheu de história a Poo-Bah Records, em Pasadena, Califórnia. Cobertos com uns fatos-macaco de cor cinza, a dupla ocupa as horas a fumar umas ganzas, a preencher prateleiras com discos de incríveis como SZA, Ras G ou Little Richard enquanto somam uns dólares.

“A loja de discos acomoda todos os conceitos e skits [interlúdios de voz] do álbum,” explica Pink Siifu. “Sinto que todos os gigantes [do hip-hop] fizeram o mesmo, criaram universos, e nós quisemos fazer o mesmo. Os Outkast sempre me levaram para outros lugares; a [Erykah] Badu também; a ‘Mothership Connection’ do George Clinton não existia, mas quando ele a criou, talvez se tenha tornado real. Cresci com cenas dessas. Por isso, em vez de apenas fazermos músicas sobre um tempo, quisemos levar o pessoal para outro lugar.”

“A ideia para uma loja de discos veio do skit do Pinky retirado do filme ‘Next Friday’ e que está no disco ‘Aquemini’ dos Outkast,” descreve Fly Anakin. “[Com a loja], criámos algo que fosse tangível, que pudéssemos de facto levar para qualquer lado. Nós podemos pegar num monte de material e fazer uma loja pop-up numa cidade qualquer e chamar-lhe ‘FlySiifu’s Record Shop’.”

Os skits de “FlySiifu’s” incluem mensagens voz deixadas por clientes consumidos de raiva pelo serviço – ou falta dele – prestado por Fly e Pink. Interlúdios hilariantes, ainda que essenciais para dar corpo à narrativa deste trabalho. “É o tipo de cena que crescemos a ouvir,” diz Fly Anakin. “Ao incluires personalidades no disco, este acaba por viver mais tempo. Sinto que criámos um programa televisivo à conta de toda a personalidade que demos ao disco. É também assim que acabas por criar todo um ambiente, é isso que me dá pica para fazer música.”

“E tu sabes como o pessoal curte descarregar nos serviços ao cliente, tínhamos mesmo de incluir algo do género,” brinca Pink Siifu.

Pelo âmago de “FlySiifu’s” corre uma inescapável nostalgia que se traduz da artwork ao conceito da loja de discos aos samples de índole soul desenhados por produtores como Graymatter, Jay Versace e Madlib. Na verdade, são bastantes os beatmakers que compõem o álbum, além de outros tantos rappers que surgem em raps ou skits, sem que o projecto soe caótico.

“Incluir aqueles artistas nos skits foi uma forma de os ter no álbum, mas sem ser numa música,” explica Siifu. “Nós só queremos celebrar os nossos manos. Curtimos mostrar a nossa apreciação por aqueles que nos inspiram e inspiram a cultura.”

É por esta postura que Fly e Pink são associados a uma comunidade independente de rappers que tem vindo a emergir de costa-a-costa na América. Comunidade essa formada por uma jovem geração de artistas negros hiper-conscientes da sua condição numa América racializada e que através da música reflectem sobre traumas, saúde mental, direitos civis e excelência negra. Enquanto isso, puxam uns pelos outros para que o sucesso que perseguem seja coletivo. Associados a esta comunidade estão, além de Fly Anakin e Pink Siifu, artistas como Slauson Malone, Mavi, AKAI SOLO, Ankhlejohn ou loji, e turmas como Mutant Academy ou sLums em Nova Iorque.

“Eles puxam todos por mim,” diz Fly. “É a única razão pela qual aprecio esta comunidade. Há ali tanta gente talentosa que sinto que temos de cuidar uns dos outros. Nós queremos que todos sejam excelentes, queremos colaborar, em vez de sentir que temos de competir. Nós somos parte de algo maior. Em vez de beefar outros gajos, prefiro ser positivo, especialmente porque não existe qualquer razão para estar fodido com outra pessoa. Nós podemos simplesmente fazer algo juntos. Quero que esta geração dure para sempre e com este álbum podemos mostrar ao pessoal que se podem reunir e criar cenas em conjunto.”

“Quero que esta geração dure para sempre e com este álbum podemos mostrar ao pessoal que se podem reunir e criar cenas em conjunto”

— Fly Anakin

Quando Fly e Pink finalmente estacionam à porta de um AirBnB em Bed-Stuy, a ligação começa a soluçar. Nos minutos finais da conversa, relembro que passaram seis meses desde a edição de “FlySiifu’s” e pergunto como se sentem neste momento em relação ao projecto. “Quando volto a escutá-lo, penso, ‘eish, nós estivemos fortes nisto’,” diz Pink Siifu. Apesar da pandemia ter obliterado os potenciais espectáculos ao vivo para este ano, Pink deixa uma promessa: “O Fly nunca fez uma festa de lançamento, por isso, assim que esta merda do Covid desaparecer, vou planear uma festa para o meu mano.”

Promessas à parte, o que é certo é que ambos têm o prato bem cheio para o que resta de 2021, independentemente das barreiras que surjam. Entre os planos de Pink Siifu estão “um álbum totalmente jazz, um EP com o B Cool Aid e algumas beat tapes.” Fly Anakin, por seu turno, está a trabalhar num disco com o produtor Madlib – autêntica lenda do beatmaking – e não resisto a perguntar por mais detalhes sobre o projecto. “Não vou dizer quando vai sair, mas está em progresso. Gostaria que saísse este ano, é para isso que estou a trabalhar, mas se não acontecer, não acontece.” Fora o projecto “FlyLib” (nome possível?), há outro álbum em nome próprio na agenda, a sair com selo Lex Records.

“Os próximos cinco anos vão ser fantásticos,” assegura Fly Anakin nos últimos cartuchos da chamada. “E está escrito, o nosso próximo trabalho em conjunto está em andamento. Nós nunca parámos de trabalhar nele.”

Pink Siifu concorda e com um riso irónico…: “Mas reza para que sobrevivamos até lá.“