À descoberta de pérolas reggaeton feminista com Clara!

Fotografia por Coquelin Photographies

A relação de Clara Sobrino com os ritmos do reggaeton começou logo à primeira escuta, algures no início dos 2000. “Foi na Pirámide, um clube em Corunha que entretanto desapareceu”, recorda a DJ e produtora dos tempos de adolescente naquela cidade portuária da região da Galiza. “‘Dale Don Dale’ de Don Omar começou a tocar, a tomar conta da pista de dança, e eu fiquei imediatamente hipnotizada. Foi uma paixão arrebatadora.”

O reggaeton, na sua alquimia de rimas hispânicas e beats quentes imaginados em Porto Rico, vivia na altura um período de particular ascenção nos circuitos mainstream globais. Nos Estados Unidos, esta música escutava-se um pouco por toda a parte, mas sobretudo nos bairros latinos que se estendiam de Los Angeles à encosta Atlântica de Miami, com as comunidades locais a adoptaram as narrativas de amor, sexo e orgulho cultural características do género como uma espécie de state of mind – a voz e corpo do orgulho identitário de um povo.

Já deste lado do Atlântico, os clubes ibéricos foram uma importante porta de entrada do reggaeton na Europa ao importarem os singles mais orelhudos que despontavam nos states e que a seu tempo conquistaram um lugar próprio entre a corrente pop que batia à época. Porém, houve claras diferenças no entusiasmo com que o género foi acolhido de ambos os lados do Oceano: se o discurso do reggaeton era reflexo das experiências e percepções de vida das comunidades latinas do continente americano, o mesmo não encontrava paralelo com a realidade espanhola – e muito menos portuguesa. Na verdade, tanto na Galiza de Clara Sobrino como em Portugal, o reggaeton foi acolhido com um pudor generalizado, espécie de prazer culpado. “Esta era uma música a que apenas dançávamos nas discotecas ou secretamente nos nossos quartos,” conta a artista de 29 anos, actualmente a residir em Bruxelas. “Ninguém queria ser descoberto com reggaeton a passar nos headphones. Era como que uma norma social invisível. Eu mesma, durante muito tempo, fiz essa separação entre música para entreter e música mais séria que escutava regularmente e que se situava entre cenas alternativas e indie.”

“Esta era uma música a que apenas dançávamos nas discotecas ou secretamente nos nossos quartos. Era como que uma norma social invisível

Com o avançar da década, o reggaeton acabou por cair no esquecimento e depressa foi arredado dos tops e playlists. Porém, mais tarde haveria de ganhar uma segunda vida com um renovado fulgor e novos protagonistas. Produtores como Arca, por exemplo, trouxeram uma outra elasticidade aos limites sónicos do reggaeton, revolucionaram a sua linguagem base e inspiraram uma geração de artistas a mergulhar no espólio do género como meio de reinvenção do presente e futuro. Clara é sem dúvida um dos membros desse grupo restrito de artistas underground que sacudiram a poeira das pérolas old-school e nos despertaram novamente a atenção para os ritmos urbanos da experiência latina. Fê-lo, no entanto, com uma missão distinto: celebrar as reggaetoneras de quem nunca ouviste falar.

“Depois de começar a passar reggaeton em festas e bares como dj, decidi investigar sobre as cantoras associadas ao género. Achei estranho que não tivessem muita visibilidade. Quando perguntava às pessoas se sabiam dizer o nome de uma reggaetonera, a única que conheciam era a Ivy Queen. Então fui à procura de outras cantoras e acabei por descobrir que existem imensas reggaetoneras na sombra.”

Esse desafio pessoal acabou por estabelecer os caminhos estéticos que Clara viria a adoptar no seu percurso, primeiro como dj, depois como produtora. Nos seus sets ao vivo, Clara mistura pesados bangers rave – Lotic ou Kamixlo estão entre as suas referências – com reggaeton feminista. A sua selecção de faixas chega a ser desconcertante: Clara é arrojada a incendiar as pistas-de-dança com mash ups de reggaeton vintage e hits pop intemporais – imaginem “I Like To Move It” dos Reel 2 Real ou uma qualquer composição de Kylie Minogue a servir de tónico ao slang hispânico. “Nos 2000, era habitual para os artistas reggaeton samplarem beats pop que eram gigantes na América. Eu adoro isso porque acrescenta um certo humor à música ao mesmo tempo que reinventa a cultura pop através de diferentes possibilidades musicais.”

Em finais de 2015, e depois de anos a aperfeiçoar as suas misturas, Clara – sob o nome artístico Clara! – lançou a primeira de uma série de mixtapes intitulada Reggaetoneras através do colectivo de djs feministas e não binários Sister, que a apoiou activamente nas suas pesquisas. No ano seguinte, juntou-se à editora belga Gravats e no espaço de dois anos adicionou duas novas compilações à colecção. Como prova do crescente reconhecimento que tem vindo a conquistar – particularmente nos nichos alternativos -, ambos os projectos, editados em cassete, esgotaram em poucos dias.

“A minha ambição é divulgar o trabalho destas artistas,” assegura. “Cassetes são um formato que aprecio, mas editar 100 cópias não lhes daria a visibilidade que tinha projectado, por isso insisti em partilhar as mixes no Soundcloud para toda que toda a gente tivesse acesso a elas.”

E porque é que nunca ouvimos falar destas reggaetoneras? Clara explica que estas cantoras estão presentes na cena há tanto tempo quanto os artistas masculinos, mas que o sucesso delas esteve desde sempre circunscrito às dinâmicas de género intrínsecas à cultura de origem desta sonoridade – e do próprio universo da música em geral. “O que acontece com as reggaetoneras é o mesmo que acontece connosco, mulheres dj: nós não somos olhadas da mesma forma que os homens e as pessoas exigem muito mais quando se trata de uma mulher a passar música. Então deixaram de cantar porque não estavam a gozar do mesmo sucesso que os artistas masculinos.”

Depois há o debate sobre o discurso dominante no género. Se por um lado é um género musical – como em tantos outros – percepcionado sob estereótipos sexistas, por outro há um desequilíbrio de forças que se reflecte na ausência de liberdade das mulheres se exprimirem sexualmente através desta música. Reverter a lógica discursiva dominante é uma das motivações de Clara. “Há gente que me diz que as mulheres não deviam escutar reggaeton porque é muito sexual e machista. Para mim, as mulheres podem ser tão sexuais quanto os homens. Há canções em que elas falam sobre sair com os amigos, dançar com qualquer pessoa e simplesmente divertiram-se; noutras cantam que também gostam quando os homens as dominam sexualmente sem que haja ali qualquer sugestão de que alguém as está a forçar a isso. Eu gosto desta transferência narrativa em que as mulheres se colocam no centro da conversa.”

“As mulheres podem ser tão sexuais quanto os homens. Eu gosto desta transferência narrativa em que as mulheres se colocam no centro da conversa”

Uma das aspirações de Clara enquanto artista é conhecer as pioneiras do reggaeton, ainda que aborde o tema com uma tremenda e calculada auto-consciência sobre o seu trabalho e o que este pode representar para as reggaetoneras. “Eu sou europeia e receio que digam que me estou a apropriar culturalmente da música delas. É muito importante para mim tornar claro a origem desta música para que não haja a percepção de que criei isto ou que estou aqui parar salvar estas artistas de alguma coisa. Eu respeito-as muito e não tenho quaisquer intenções de me apropriar do que seja. Esta música é delas. Além disso, eu não faço ideia como será viver em Porto Rico ou algo do género, por isso temos pontos-de-vista diferentes sobre o feminismo. No meu caso, quando produzir algo na linha do reggaeton, será sempre através das minhas perspectivas e expectativas.”

Sobre o território da produção e do beatmaking, Clara admite que ainda não se encontra numa zona de conforto para expor as suas primeiras construcções. Ainda assim, não se inibiu de experimentar a sua voz sob ritmos neo-reggaeton, como aconteceu recentemente com o EP Meneo, registo em colaboração com Maoupa, produtor igualmente sediado em Bruxelas. “É muito difícil ser objectivo com a nossa voz. Estás em constante dúvida se vai soar bem. Mas as pessoas gostaram e decidimos dar continuidade ao projecto. No final gostei imenso de todo o processo.”

O presente status do reggaeton é descrito por uma curva ascendente. Não restam dúvidas de que nomes como J-Balvin e Bad Bunny impulsionaram o género e atraíram de novo o público para a ressurreição do género. Clara prefere, porém, apontar Karol G, Tomasa del Real ou até mesmo a basca Bad Gyal como vozes femininas que estão a nivelar as regras do jogo nos seus próprios termos. Com o clima favorável à emergência de artistas femininas e LGBTQ+, Clara, que incluiu na sua mixtape uma faixa da artista transexual La Bori, planeia agora alargar as suas pesquisas a produtoras de reggaeton. Razões mais que suficientes para manter debaixo de olho uma artista determinada em desafiar o domínio patriarcal do universo reggaeton.

“Eu só quero mostrar que as mulheres podem cantar sobre o que lhes apetecer, que os homens podem dançar num vídeo e serem sexualizados, ou até focar em relações homossexuais,” diz, o seu gentil tom de voz a tomar contornos vívidos. “Eu não posso mudar o mundo, mas tento fazer a diferença.”


Entrevista originalmente publicada na Nation of Billions.