Conhece as “Street Heroines” que reivindicam o espaço que merecem na cena artística urbana

Fotografias por Alexandra Henry

Alexandra Henry era uma jovem estudante de fotografia quando começou a documentar as letras gordas e os traços imponentes da arte urbana exibida nos prédios e comboios de Washington. Como quase sempre acontece nestes momentos, a fotógrafa norte-americana não fazia ideia de que estava a nascer uma paixão para a vida pelo graffiti e culturas de rua; e muito menos imaginava que esta a levaria a conhecer e estudar as scenes de cidades tão distintas como Los Angeles, Londres, São Paulo ou Nova Iorque.

Essas explorações pelo mundo fora acabaram por informar o mais recente projecto cinematográfico de Alexandra Henry: “Street Heroines”, documentário que aborda a coragem e a criatividade das writers e artistas de rua que têm nas fachadas urbanas uma tela privilegiada para reflectir sobre os obstáculos que enfrentam nesta cultura.

São mais de vinte artistas de todo o mundo – entre elas, Lady Pink, Lady Aiko ou Swoon – que, na primeira pessoa, partilham as suas visões e perspectivas sobre a comunidade feminina de arte urbana ao mesmo tempo que reclamam por respeito e prestígio semelhantes aos seus conterrâneos masculinos.

Estivemos à conversa com Alexandra Henry, que nos descreveu as raízes do projecto e o debate que com ele procura instigar no universo da arte urbana.


Como é que conheceu estas artistas e decidiu documentar os seus trabalhos?

Em Nova Iorque, tinha o hábito de fotografar o mural 5Pointz e um dia, em 2012, cruzei-me com duas raparigas a pintar uma parede. Perguntei se as podia fotografar e depois conversámos. Uma delas era de Barcelona e a outra do Bronx, conheceram-se via Facebook e decidiram reunir-se em 5Pointz.

A artista do Bronx era a Uno Seis Tres e ela contou-me que estava para acontecer um festival exclusivo a street artists femininas no Peru chamado ‘Nosotros Estamos En La Calle’. Achei interessante ver o que as mulheres, artistas de rua, andavam a fazer então fui ao festival e acabei por conhecer a TOOFLY, Lili Cuca e outras artistas locais. Mantivemos contacto e fiquei de documentar o trabalho delas sempre que estivessem em Nova Iorque.

A partir daí, desenvolvemos uma grande ligação. Para mim a ideia era, ‘estou aqui para as ver trabalhar, ouvir a história delas e as suas experiências’ – não se tratava apenas de fotografar e seguir em frente para outro projecto qualquer. Não sei porque é que foram tão fixes comigo, mas talvez tenha sido porque estávamos todas a fazer o nosso trabalho.

O documentário foi gravado em diferentes cidades da América Latina como São Paulo, Cidade do México ou Medellín na Colômbia. Porque é que escolheu filmar nestas cidades?

Quando dei início ao projecto, eu vivia em São Paulo e o que realmente me impressionou naquela cidade foi a presença de graffiti em todo o lado. Fiquei com a sensação de que era mais aceite pela sociedade. Apaixonei-me logo pelos diferentes estilos de arte urbana e graffiti, particularmente os da artista Magrela, que só mais tarde percebi que era uma mulher. O trabalho dela estava por todo o lado.

Então, senti uma grande sinergia entre São Paulo e Nova Iorque e eu queria fazer um projecto que olhasse para as semelhanças entre ambas as cidades através da cultura de rua.

A Cidade do México entrou no projecto porque é uma das maiores cidades do mundo e um lugar onde se produz imensa cultura de rua interessante. Mas é diferente de Nova Iorque e São Paulo porque aborda artistas internacionais para pintarem as suas ruas em vez de celebrar os artistas locais – inclusive as mulheres, que são poucas.

É sempre bom fazer as coisas em ‘três’. Mostra diferentes perspectivas. Além disso, não acho que a América do Sul receba muita atenção pelas coisas positivas e interessantes que tem e eu queria mesmo dar mais visibilidade àquelas mulheres porque enfrentam talvez mais desafios do que as que praticam a sua arte nos States e na Europa.

Apesar das semelhanças entre a street art de São Paulo e Nova Iorque, que características é que as tornam únicas?

Em São Paulo tens duas scenes: a pixação e o graffiti. Na América, o graffit inclui taggar ou bombing. É importante compreender estas diferenças, sobretudo relativamente à arte urbana brasileira. Há artistas femininas no Brasil que se consideram estritamente pixadoras, e não artistas de graffiti ou rua.

Em São Paulo, é mais aceite quando um desenho aparece numa porta ou numa parede a apresenta um estilo mais artístico, e não apenas a tipografia críptica associada à pixação. Mas [pouco tempo depois das gravações] as coisas em São Paulo mudaram imenso com a eleição de um governador que fez uma limpeza ao graffiti e pixação por toda a cidade.

Uno Seis Tres

A oposição à arte urbana é transversal a diferentes cidades, mas nem por isso esta deixou de se tornar numa parte omnipresente da cultura urbana em anos recentes. Mas que desafios é que os street artists em geral enfrentam nos dias de hoje um pouco por todo o mundo?

Estamos num momento realmente interessante para esta subcultura porque se tornou completamente mainstream, gentrificou bairros, inflacionou o valor das casas e fez o público olhar para a arte de rua de forma diferente. Por um lado, é fantástico como consegues transformar a comunidade através da arte, mas também tem o seu lado negativo. Acredito que os artistas estão à procura da melhor forma de lidar com isso de modo a não prejudicar as pessoas a quem na verdade estão a tentar apoiar e dar voz.

E as artistas estão a embarcar nestas mudanças? O que é que diria que elas trazem para os espaços públicos?

As artistas que decidi destacar fazem um bom trabalho no apoio que dão às comunidades. A mensagem delas é mais empática e inclusiva. Surge como um protesto sobre as dificuldades que as mulheres encontram em fazer-se ouvir. As mulheres representam perspectivas diferentes, sejas através de graffiti, colagens ou murais.

O resultado pode ser mais colorido, com toques mais femininos. Por exemplo, nos festivais de arte de rua de Nova Iorque, as mulheres tendem a pintar mensagens importantes sobre as alterações climáticas ou eventos contemporâneos – foi o que aconteceu, por exemplo, [há uns anos] com o genocídio das mulheres Yazidi pelo Daesh ou com um tributo às 200 mulheres raptadas na Nigéria. Ou simplesmente criam retratos ilustrativos dos obstáculos que enfrentam.

As mulheres estão mais em sintonia com as formas de ajudar a preservar a mãe natureza, promover a paz e demonstrar que estamos todos ligados entre nós, que na verdade somos todos um só. Não estou a dizer que não há artistas masculinos socialmente conscientes, mas é importante focar nas mulheres que estão a usar a sua arte para despertar um debate mais importante.

“Este filme aplica-se às experiências das mulheres em qualquer carreira que estejam a perseguir. Quero que sintam que têm um lugar à mesa”

No documentário, as artistas desabafam sobre não se sentirem parte dessas transformações no mundo da street art. O que é que elas dizem sobre a importância de conquistarem o seu espaço e serem reconhecidas como artistas?

Agora que a street art e o graffiti estão mais na moda, a tornar-se mais transacionáveis, a aparecer em galerias e feiras de arte, ainda não se vê muito as mulheres envolvidas. Das ruas para o mundo da arte, há esta crença de que ninguém quer obter arte criada por mulheres. O talento está lá, é só uma questão de as pessoas a reconhecerem.

Em muitas das entrevistas que dão, elas nem querem falar sobre políticas de género no universo do graffiti e arte de rua. Elas só querem ser reconhecidas pelo seu talento, por desenharem no spot mais perigoso ou antes de alguém o ter feito. É muito difícil fazerem parte de alguns eventos e estarem ao mesmo nível que os homens, mesmo que estes só tenham pegado numa lata de tinta há um par de meses.

Os homens continuam a obter mais oportunidades e as mulheres são esquecidas. Ou seja, temos mesmo de incluir o debate de género, infelizmente.

Imagino que haja desafios em particular que as mulheres encontram quando estão a pintar nas ruas – o assédio sexual , por exemplo. Que experiências é que partilharam sobre pintar nas ruas ao mesmo tempo que lidam com esses eventos?

Há algumas histórias de assédio enquanto pintam, seja de dia ou de noite. Se és uma mulher num ambiente urbano a pintar sozinha, vais ter pessoas a vir ter contigo e comentar sobre a tua arte, mas também a aproveitar para saber mais sobre ti e a pedir para sair contigo. E se elas rejeitarem, depois sofrem bullying.

Houve momentos também dentro da própria subcultura em que muita gente destruiu o trabalho de certas artistas simplesmente pintando por cima e depois mostrando nas redes sociais com descrições depreciativas.

Mas as mulheres devem continuar a ser audazes e a assumir as decisões que tomam, seja quando decidem pintar em algum espaço ilegal, seja por tornarem pública uma opinião. As mulheres devem sentir que têm poder e trabalhar em prol de um objectivo comum de criar um ambiente mais pacífico para que os outros possam prosperar e sentir-se fortes o suficientes para denunciar aqueles que as fazem sentir-se desrespeitadas.

Acredito que essa é a razão que levou tanta gente a apoiar “Street Heroines”, porque as fez reflectir e olhar para os seus caminhos criativos de forma diferente. Tem sido incrível ver tanta gente contactar-nos para contar a sua história. Elas sentem, ‘se estão a falar de algo pelo qual passei, então eu também posso contribuir’.

Lili Cuca e Vera Alm

A Martha Cooper, histórica da fotografia documental da cultura hip-hop, diz no filme que os artistas fecham os seus grupos às artistas. As protagonistas do filme concordam com a afirmação?

É difícil dizer. Não posso falar por todas as mulheres que entrevistei, mas acho que os homens se sentem intimidados ou ameaçados por qualquer pessoa que seja mais talentosa que eles. Elas dizem que existem duas energias em jogo. Elas sentem que são mais respeitadas quando pintam ao lado de uma crew de homens e por mostrarem uma postura mais firme na vida. Mas depois ficam frustradas por terem de usar essa energia quando têm claramente um lado mais feminino, talvez mais sensível, que pode afectar outra pessoa de uma forma diferente. Muitas das mulheres com quem conversei começaram a pintar com homens e admiravam-nos. Mas agora apercebem-se que preferem trabalhar ao lado de outras artistas porque traz resultados diferentes.

As mulheres levam um pouco mais tempo a aperceber-se do seu poder e potencial. Acho que até a própria Martha Cooper passou por isso, porque agora reconhece que podia ter-se focado mais em fotografar mulheres a fazer graffiti. Ou então explorar mais a cultura das b-girls e das mulheres no hip-hop – o que acabou eventualmente por acontecer. Mas acho que ela pensa que poderia ter feito mais. Quer dizer, todas nós nos apercebemos disso agora e é por isso que nos estamos a unir neste momento tão crucial.

É incrível ter a Martha Cooper a participar no documentário; ela e outras pioneiras como a Lady Pink, porque ambas representam uma visão histórica das mulheres nesta subcultura. Porque é que foi atrás de testemunhos de mulheres com um passado ligado à arte urbana?

Podemos dizer que as mulheres começaram a envolver-se com a street art no final dos anos 1970, início dos 80, por isso já lá vão 30 anos. Senti que era importante destacar [o passado]. Escutar aquelas histórias uma e outra vez era escutar como se deu a história desta subcultura. As artistas deste filme estão realmente a contar a história tal como aconteceu; como é que aprenderam, foram influenciadas e conectaram umas com as outras. Temos imensa sorte por estas pioneiras ainda estarem envolvidas com esta subcultura. A Martha Cooper está por todo o lado, ainda hoje viaja pelo mundo. Ouvir dela como as coisas têm mudado e como deseja apoiar as mulheres é poderoso.

Que outras mulheres podemos encontrar no filme?

Temos pioneiras e veteranas como MadC e Miss17 a mostrar-nos por onde andam hoje em dia. Depois da Lady Pink e da Martha Cooper, segue-se uma segunda geração com Claw Money, TOOFLY e Swoon. A seguir há uma terceira inspirada pela Swoon. Ela mostrou a toda uma geração de artistas que podem desenhar graffiti nas ruas e mostrar algo bonito. Através dela, as pessoas aperceberam-se que as ruas podem ser utilizadas de uma outra maneira.

Que impacto gostaria que o filme tivesse junto do público?

Este filme tornou-se numa espécie de intersecção entre arte e protesto, com o foco nas mulheres que fazem das ruas a tela onde abordam as coisas que gostam e aquilo que realmente as afecta. Espero que “Street Heroines” sirva para empoderar as pessoas a partilhar as suas histórias ou que jovens mulheres sintam que é possível seguir a carreira ou percurso criativo que desejam independentemente de serem mulheres.

Na verdade, a mensagem deste filme aplica-se às experiências das mulheres em qualquer carreira que estejam a perseguir – seja na política, ciências, administração ou outras áreas dominadas por homens. Quero que sintam que têm um lugar à mesa.

Para a audiência em geral, quero que vejam como as mulheres trabalham no duro para seguir os seus objectivos. [No tema da street art] é difícil medir o impacto positivo porque as pessoas rapidamente dizem, ‘estão a destruir propriedade, é uma abominação, vandalismo’. Mas acredito que a arte que estas mulheres estão a criar pode na verdade ter um impacto positivo na sociedade, mudar perspectivas.

TOOFLY

E qual foi a lição mais marcante que retirou do processo de produção desde documentário?

Quando defines um projecto, tens realmente de ser apaixonada por ele e estar disposta a sacrificar certas coisas a que estavas acostumada na tua vida ou outros objectivos que tinhas em mente. É preciso perceber que quando um projecto chega a determinado ponto e estás exausta e não o queres fazer mais, este ganha vida própria e tu tens mesmo de trabalhar nele. Só tu o podes terminar. Persistência, trabalho árduo e sacrifício são coisas com que te deves tornar muito familiar.

Se posso deixar um conselho que seja a quem tem interesse em criar um documentário, digo apenas que se trabalhares um bocadinho todos os dias para esse objectivo, então vais conseguir atingi-lo. Lembro-me de ter tido a disciplina de Jornalismo na universidade e de um escritor do L.A. Times ter dito durante uma conversa com a nossa turma: ‘toma atenção a tudo o que te torna curiosa porque há qualquer coisa ali. E mesmo que seja só para ti, mesmo que só tu tenhas curiosidade, devias investigar o porquê [dessa curiosodade]’. Esse conselho esteve sempre na minha mente em relação ao graffiti e à arte de rua.