O coletivo Unidigrazz está focado em agitar a cena cultural de Sintra

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Fotografias por Pedro Assis

No princípio era só uma vibe. Quando Diogo Carvalho, João Tristany e Nuno Trigueiros forjaram um coletivo, o que tinham em mente era estimular a criatividade e paixão que sempre partilharam por fazer arte. Foi assim que nasceu “a” Unidigrazz, numa tarde preguiçosa em Mem-Martins, um projecto que deve menos a uma necessidade e mais a uma determinação em manterem-se activos e curiosos, independentemente de onde isso os levasse.

Corria 2018 e não era a primeira vez que estes três manos emprestavam skills a uma turma de artistas. Uns anos antes, quando ainda estudavam na Secundária de Mem-Martins, também eles fizeram parte do movimento AWAKE (AWK), que à época absorveu uma juventude de artistas emergentes a transbordar de ideias e ambições. Nesse movimento feito de pessoal da linha de Sintra (LS), para além do Diogo e do Nuno, incluíam-se Sepher AWK ou Marco Boto; ou seja, músicos, fotógrafos, realizadores, ilustradores, pintores, muralistas e graffiti writers; talentos que, sem o saber, impulsionaram uma nova vanguarda artística na LS.

Ainda que tenha sobrevivido apenas um breve período, o AWK semeou uma energia criadora que muito contribuiu para o aparecimento da Unidigrazz, que tal como aquele movimento, é hoje formada por pessoal multidisciplinar: Diogo Carvalho (24 anos, videógrafo, fotógrafo, ilustrador, pintor), Nuno Trigueiros aka Onun Trigueiros (24 anos, ilustrador, pintor, fotógrafo), João Tristany (26 anos, músico), Bruno Teixeira aka Sepher AWK (24 anos, ilustrador, pintor, graffiti writer) e Rapeppa Bedju Tempu (ilustrador e membro mistério do grupo).

Mas se no início havia um certo hedonismo a nortear a Unidigrazz, essa filosofia viria a dissolver-se ao longo dos últimos dois anos. Neste período, a consistente produção artística deste pessoal permitiu vincar uma imagem e estilo muito próprios que não passaram despercebidos aos circuitos de artes urbanas. O mesmo é dizer que este coletivo é hoje assunto sério na cultura street, mais ainda por estes dias com a participação na mostra de artes urbanas “Linha Imaginária” que decorre até ao início de 2022 no Museu das Artes de Sintra (MU.SA). Para primeiro evento artístico em nome coletivo, a estreia não podia ser mais auspiciosa.

Para além da Unidigrazz, a exposição conta com um conjunto de artistas da LS e outros bairros ocultos de Lisboa que por defeito são excluídos das programações culturais deste género de espaços. O momento é especial e na tarde amena de Novembro em que nos reunimos à conversa, o orgulho da crew nesta oportunidade é indisfarçável.

Soldado Marcio” de Onun Trigueiros (esq.) e “Kama” de Sepher AWK (dir.).
Foto: Ricardo Miguel Vieira

Assim que entro no museu, mais precisamente na sala exclusiva às obras deles, reconheço logo esse sentimento no rosto do Diogo Carvalho quando posa confiante junto a um quadro, enquanto Sepher AWK ajusta a câmara do smartphone e saca a chapa. Mais um retrato para o Instagram, porque espalhar a palavra sobre a mostra não pode abrandar.

É também mais do que isso: é desfrutar e memorizar uma experiência única na carreira destes artistas.

Sepher AWK: Esta exposição foi bué importante para a Unidigrazz. Enquanto individualmente temos algum enfoque, foi mesmo importante para nós assumirmos essa individualidade em conjunto.

Diogo Carvalho: É sempre bom ver iniciativas na LS que dêem espaço para gente como nós expor e mostrar que não são só alguns que podem expor em certos sítios. É muito bom ter as nossas obras no MU.SA. Não só as nossas, mas de outros artistas cá da linha e outras linhas que não têm essa visibilidade.

Sepher AWK: Senti que foi bué importante até a mistura que houve, pela diversidade de realidades que se juntaram ali na nossa zona. Senti-me mesmo contente no dia da inauguração, nunca tinha tido uma experiência assim. Foi super enriquecedora.

Onun Trigueiros: Acho que todos passámos por este museu em criança. Nessa altura, o sonho de expor no MU.SA estava longe, mas pensei que gostaria de um dia expor aqui uma cena minha. É um museu elitista, onde vês mais arte antiga. Então acho que isto foi um passo fixe para nós, para a malta da nossa idade, da nossa geração, aqui da zona. Se fores a ver, é o museu mais próximo das nossas casas. O resto é tudo em Lisboa. Este é da zona.

O primeiro dia da mostra foi uma celebração incrível com visitantes não só da linha de Sintra, mas do Lumiar, Cova da Moura, Cascais, Estoril ou Lisboa. Gente jovem e mais antiga, brancos e negros, moradores dos bairros invisíveis, outros nem tanto, reunidos num espaço que durante dois meses promete amplificar as vozes dos artistas menos escutados das periferias de Lisboa – os mesmos que tantas vezes se sentiram hostilizados só por serem e estarem em espaços museológicos.

António Brito Guterres, co-curador da mostra, sobre estes artistas: “quando entramos em museus os seguranças seguem-nos. o q dizemos não conta. O que fazemos também não”. Nuno Trigueiros sobre a distância (que é bem real) que sempre existiu entre espaços como o MU.SA e a juventude da zona; entre a vila de Sintra, sede de concelho, e os territórios que a envolvem e que esta representa: “Havia amigos nossos, pessoal aqui da zona ou da Tapada [das Mercês] ou Mem-Martins, que não sabia onde era o museu. Isso quer dizer alguma coisa.”

Entrar na “Linha Imaginária” é mergulhar fundo noutros modos de olhar e respirar a linha de Sintra e os bairros esquecidos de Lisboa. As pinturas, esculturas, retratos ou vídeos, dos mais abstractos aos mais concretos, reflectem experiências pessoais nestes territórios através de referências e significados que neles são omnipresentes. A estética Unidigrazz não é excepção, com os seus pormenores nostálgicos que evocam símbolos materiais e humanos da grande fronteira da Lisa:  os comboios suburbanos que rasgam a paisagem; as torres habitacionais que são arquitectura-base; ou os digras que fazem a ronda à zona.

Onun Trigueiros: Isto é mais que pintar pessoas. É transportares [para o museu] uma cena que tu vês. Porque há certo tipo de pessoas e de personalidades que não são representadas em pinturas e noutras artes.

Tristany: Nós temos a nossa individualidade, mas também motivações diferentes e conjuntas. Sinto que não tem de nos ser atribuída uma responsabilidade do tipo, ‘ah, eles vão falar sobre isto, [sobre a vida na linha de Sintra]…’, numa espécie de representatividade. Mais importante é [criar] todo um efeito contrário à cena BBC Vida Selvagem, de filmar um espaço e não ser a própria gazela ou águia a falar do seu contexto. Isso [acontecer] não é novo para nós, mas aqui somos nós a falar sobre nós mesmos.

Diogo Carvalho: Sim, é sobre ter gente de dentro a falar. Não quero ser arrogante e afirmar que represento toda a LS, mesmo que também o faça. Mas o que queria mesmo [com a nossa arte] era fazer coisas bonitas e quebrar esses estigmas.

Onun Trigueiros: É a cena de também dizer que isto é bonito…

Diogo Carvalho: Exacto, de não ser uma coisa do tipo, ‘agora vou à Suécia, faço umas fotos e digo que é isto que é a Suécia’. Aqui é gente de dentro, que vive dentro, e que consegue mostrar que isto é mais do que os estigmas e preconceitos que sempre existiram [sobre a LS].

Para a Unidigrazz, esses estigmas e preconceitos sentem-se no desamor de museus e casas culturais sintrenses pelos trabalhos de artistas street, malta sem diplomas nem atracção por cânones estabelecidos, mas autênticos na sua expressão. Em “Linha Imaginária”, assumem que há uma resistência à norma que existe nestes lugares de diálogo artístico. Resistência essa que ganha outra força quantos mais intervenientes venham a emergir, o que me levar a perguntar se há um novo levantamento artístico em ebulição na LS.

Onun Trigueiros

“Se existir, esse será o do pessoal que está a construir mais plataformas e poder de comunicação,” assegura Tristany. “Temos pessoal como o halb (Hugo Barros), o Lukanu, o Bazofo [Dentu Zona], a Petra Preta e outros… E é fixe haver pessoas que não querem ser só artistas, também querem ser fotógrafas ou realizadoras. O que sinto é que estão todos a ter cada vez mais voz para falar de si mesmos.”

Nesta altura da conversa, surge um debate sobre a integração das novas gerações (e ideias) no circuito artístico de Sintra. Para eles, até pode haver cada vez mais jovens artistas a moldar a identidade cultural da zona, mas a realidade é que são poucas as portas abertas para os filhos da terra que, através da arte, desafiam percepções básicas sobre a vida na LS.

Tristany: É muito mais fácil conseguirmos um apoio da Câmara de Lisboa do que de Sintra – e nós somos daqui. Isso é grave porque somos representantes deste espaço.

Diogo Carvalho: O que está a acontecer no MU.SA é muito bom, mas não pode ser só uma vez.

Tristany: [Em Lisboa], a Hangar tem sido uma boa plataforma de apoio e festivais como o Iminente também foram muito importantes para nós, para começarmos a acreditar.

Onun Trigueiros: Iá, só que vês um cartaz cheio de pessoas que são daqui, mas temos de ir vê-las lá [em Lisboa]. É tipo montra.

Tristany: (aponta para Trigueiros) O grande revolucionário desta ideia é este menino aqui, que já não vai a Lisboa… (o pessoal ri-se).

Onun Trigueiros: É a preguiça de ir a Lisboa… Não tenho vontade de ir lá. Desde miúdo que oiço o pessoal dizer que vai sair a Lisboa ou Cascais.

Tristany: Isso é verdade. Mas porque é que ninguém questiona uma pessoa que tem preguiça de vir a Mem-Martins?

Tristany

A questão que Tristany suscita faz mira à escassa experiência cultural e artística do concelho de Sintra. Exceptuando a movida da vila, gizada para os visitantes de outras paragens, há um sentimento de ausência de um circuito de partilha e convívio artístico entre novas gerações, a que se soma a inacessibilidade a certos espaços, como há pouco sublinharam. O efeito dessas ausências é o de empurrar os artistas da LS para Lisboa, uma consequência que gostariam de ver invertida.

Com o propósito de questionar o poder local sobre o estado de coisas, a Unidigrazz formalizou recentemente uma associação, o que só foi possível depois de uma bem sucedida maratona de crowdfunding. A associação pretende amplificar a mensagem não só do coletivo, mas de outros artistas que queiram potenciar o seu talento e ver esclarecidas importantes informações sobre a ocupação de espaços artísticos na LS. Nesta fase, o grupo está empenhado em apresentar aos gatekeepers da cultura local um plano de actividades para o futuro próximo.

Por outro lado, a associação nasce da inevitabilidade do grupo agilizar o apoio necessário para trabalhar de forma consistente. As ambições crescem e ainda que o modo de trabalho seja do it yourself, este advém mais de uma necessidade do que de uma ideia romântica de produção fechada a actores exteriores.

“Nós queremos ter uma estrutura e recursos e até agora não temos sequer um espaço nosso,” explica Diogo Carvalho. “Depois, se pudermos não perder tempo a montar telas ou a aprender carpintaria, então vamos de certeza criar mais e melhor, com mais tempo.”

Sepher AWK e Diogo Carvalho

Neste último ano e meio, a associação foi ganhando corpo, com reuniões semanais e o alinhamento de objectivos para o próximo ano. Também têm andado mais próximos da comunidade, promovendo pequenas iniciativas, inclusive com crianças (“Unidigrazz is for the children“, diz alguém entre risos do pessoal). O que é certo é que a Unidigrazz continuará firme na correria pelo lugar que merece na cultura da linha – e essa persistência será de certeza uma inspiração para outros visionários da zona continuarem a acreditar no seu talento.

“A dica aqui é para que este tipo de experiências [como a “Linha Imaginária”] aconteça mais vezes, que vale a pena dar oportunidades às pessoas que estão a expor ali” resume Sepher AWK. “Gostávamos de conseguir viver do que fazemos, poder inovar sem nos preocuparmos em amealhar um extra para nos sustentarmos. Queremos ganhar a nossa voz na linha de Sintra e influenciar e ajudar as pessoas que, como nós, não têm possibilidades para fazer melhor. É essa a nossa luta.”