Para Tristany e o coletivo Unidigrazz, há uma outra história sobre a Linha de Sintra por contar

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Fotografias por Hugo Barros/Unidigrazz

Há cenas entusiasmantes a acontecer para os lados da Linha de Sintra. No último par de anos, uma série de artistas multidisciplinares da zona de Mem Martins – fotógrafos, ilustradores, realizadores, grafíti writers e outros a ferver com ideias – deram corda a um movimento cultural urbano que soma seguidores à medida que colhe o reconhecimento que merece. Um tanto mais interessante nesta emergência é o facto destes artistas independentes, munidos de identidades e visões bem vincadas, terem construído uma sólida comunidade entre si, percebendo à partida que as probabilidades jogam a favor no momento em que silenciam o ego, colaboram activamente e apostam no sucesso de todos os envolvidos.

No interior deste microcosmos da LS há igualmente espaço para a formação de coletivos. É o caso de Unidigrazz, cujos membros incluem, entre outros, o rapper, cantor e produtor Tristany, o ilustrador Nuno Trigueiros e o realizador Diogo Carvalho.

Para falar dos recentes esforços de Unidigrazz é preciso olhar para o percurso de Tristany na música até aos dias de hoje. Depois de editar o EP “Mente Real” em 2015, um projecto assumidamente street rap, Tristany expandiu a sua abordagem sónica a uma panóplia de sonoridades e géneros – do trap a ritmos étnicos -, sempre embebidas em estrofes profundamente emocionais. “Rapepaz“, “Mô Kassula” e “O Meninu Ke Brinkava Com Bunekas“, singles lançados em 2018, são reveladores do desafio que é categorizar a música de Tristany, ao mesmo tempo que desvendam um talento ímpar no panorama nacional.

Desta fase de transformação artística também participam Diogo Carvalho e Nuno Trigueiros: o primeiro enquanto realizador dos videoclipes; e o segundo enquanto ilustrador que documenta um mood e uma vibe particulares do coletivo. A ligação entre os três aprofundou-se desde que se reuniram pela primeira vez há cinco anos. De tal modo que Tristany, em conversa com o Siso, distribui méritos sobre o papel de cada um em Meia Riba Kalxa, aquele que será o seu álbum de estreia, agendado para Junho. “Musicalmente, este disco é em meu nome, mas é um trabalho nosso.”

Informados por vivências em grupo na LS, a arte exposta pelo coletivo lança um olhar sobre a malha social que habita às margens de Lisboa, em cidades periféricas onde as desigualdades são prevalecentes a cada esquina. É dessa narrativa que nasce o mais recente trabalho colaborativo de Unidigrazz, a mini-série “Baxu Ku Riba”, retrato sem filtros de uns rapazes na correria à procura de melhor sorte e destino na Linha de Sintra, e que culmina na divulgação de “Tirante”, o novo avanço do disco de Tristany.


A série ‘Baxu Ku Riba’ resulta de material em excesso que vocês reuniram para o single ‘Tirante’ do Tristany. Que história pretendiam mostrar e de que modo reflecte aquilo que será o álbum Meia Riba Kalxa?

Nuno Trigueiros: A história, no início, tinha que ver com a letra de ‘Tirante’. Era sobre uns rapazes que curtiam desenhar e pintar nos comboios e que queriam fazer dinheiro para investir em materiais como canetas Posca. Então vendiam tirantes, fios de ouro, para aquele fim.

Diogo Carvalho: A série reflecte muito aquilo que é o álbum do Tristany no seu simbolismo e mensagem. Cada episódio tem o seu ritmo e algo que pretendemos mostrar. Nós decidimos aproveitar o que tínhamos a mais porque era uma pena deixar de fora. E se retirássemos a série, o vídeo ficaria muito pobre.

João ‘Tristany’: As temáticas [do álbum] têm que ver com o quotidiano de quem habita [na LS], uma descrição da vida na zona que conhecemos. Será um álbum atmosférico.

No vídeo de ‘Tirante’ no YouTube, o Tristany deixou um comentário que diz ‘DAR KOR A KEM VIVE SÉPIA’. Quem são essas pessoas que ‘vivem a sépia’ e quão importante é para vocês contar as histórias delas?

João ‘Tristany’: Para mim, dar cor a quem vive sépia tem que ver com a realidade das pessoas que vivem na Linha de Sintra. Para nós a Linha de Sintra vai até à Damaia, mas oficialmente termina em Queluz. É uma cena estética e virtual, mas onde o pessoal é invisível. Tu existes, mas ao mesmo tempo não existes.

Diogo Carvalho: É muito sobre mostrar o outro lado de quem vive nos subúrbios [de Lisboa], de quem é esquecido. Daí viver a sépia. É também mostrar que [na LS] não é só bling bling e que existe um lado sensível que é político, trabalhador, e que vive num lugar mais escondido de Lisboa.

João ‘Tristany’: Politicamente somos muito diferentes, mas é interessante o equilíbrio que existe entre nós que nos permite transmitir uma mensagem. Acabamos por criar uma estética visual e sónica que vai ao encontro de todos. Por vezes sou um pouco mais reivindicativo, mas todos terão um porquê para dar cor a quem vive a sépia. Para mim tem um significado, mas sei que para o Nuno e o Diogo será algo diferente.

Nuno Trigueiros: Para mim tornou-se numa questão estética. Essa dica da sépia veio de imensas conversas nossas. Estávamos fartos do preto e branco [nos vídeoclipes], é muito usado em cenas street. Na tuga não temos uma identidade, algo que nos distinga do resto. Então acabámos por criar uma tonalidade que é daqui, a sépia é uma coisa tuga – nem digo da LS, porque não sabemos até onde pode ir.

“Pretendo mudar cabeças sobre o que é a LS, o que é a periferia de Lisboa e as suas zonas mais pobres”

— Diogo Carvalho

Vocês sentem alguma responsabilidade em representar as gentes da vossa zona e em retratar a vida tal como esta acontece na Linha de Sintra?

Nuno Trigueiros: Sinto que estou a representar algumas classes [sociais], mas não sinto uma responsabilidade palpável. Mas claro que tenho uma responsabilidade em não incentivar às coisas negativas que se passam na nossa zona – violência, roubos, aquelas coisas do quotidiano. Eu mostro esse lado, mas procuro evidenciar isso apenas de forma subjectiva e artística, o que por vezes é difícil. Procuro transformar o negativo em positivo, mostrar o outro lado [da zona]. Foi isso que quisemos mostrar com o ‘Tirante’ de forma simples e embelezada.

João ‘Tristany’: Eu sinto essa responsabilidade e acho que todos os que lidam com black music ou com uma diáspora ou subcultura também a deveriam sentir. Mas não julgo ninguém por ter uma perspectiva diferente, eu não sou mais do que eles, são consequências da nossa sociedade. É importante que as gerações seguintes não tenham necessidade de roubar por fama ou queiram ser más só porque sim ou não mostrem sentimentos. Lembro-me de muitas madrugadas passadas com o Nuno em que ficávamos irritados porque os rapazes não davam valor ao que fazíamos. Era stressante. Mas entretanto compreendemos o que nos rodeia, e também tem muito que ver com essa invisibilidade.

Diogo Carvalho: Responsabilidade não será para mim a palavra, mas sim dívida. Pretendo mudar cabeças sobre o que é a LS, o que é a periferia de Lisboa e as suas zonas mais pobres. Não apenas relativamente aos afro-descendentes, isto é independente de raças ou códigos-postal. Daí que o vídeo do ‘Tirante’ tenha uma vibe muito realista e nada sensacionalista.

João ‘Tristany’: Nós andamos de comboio, andamos pela rua, subimos aos prédios, giramos com rapazes. É por aí que descodificamos a vida na zona. Não quero de todo romantizar porque não é fixe, há gente que passa mal e outros que não. Mas é uma cena tipo degredo no sentido em que as pessoas estão a estimular-se a ficar nesta situação porque há quem ache isto assim bonito.

Romantizar estes estilos de vida acaba por perpetuar a pobreza e isso não é positivo para a comunidade e as gerações futuras. É o mesmo que dizer, ‘ah, eu não gosto do Julinho KSD ou do Apollo G porque não retratam mesmo a cena’, ou, ‘não gosto do NGA porque ele ostenta’, ou, ‘o [Allen] Halloween sim, fala [real]’. Todos retratam a vida que vivem.

Tristany, o teu som mudou profundamente desde o EP “Mente Real”. O rap e o hip hop não eram suficientes para traduzirem a tua visão?

João ‘Tristany’: O hip hop não era suficiente porque sou muito mais do que isso. Os factores sociais e culturais acontecem, então deixem-me fazer parte do movimento de forma genuína. Claro que há grandes influências – Landim, Loreta, Vado, Puto G e outros aqui na LS -, mas queremos dar o nosso registo. Para que é que quero imitar alguém? Quero é que a minha música tenha alma e amor.

Um gajo vive aqui [na LS], percebes? O Diogo lembra-se de acordar e sentir o cheiro a café e escutar kizomba; o Nuno recorda-se de a mãe escutar Pink Floyd; eu lembro-me do meu kota me levar à escola todos os dias e com a étnica dele no rádio; ou da minha avó escutar fado. Isto soa a cliché, mas é uma mistura de tudo. Se escutares artistas como o Conan [Osíris] ou o Pedro Mafama, eles também estão a trazer sonoridades mescladas.

“Tenho uma responsabilidade em não incentivar às coisas negativas que se passam na nossa zona”

— Nuno Trigueiros

Foi enquanto miúdos que Tristany, Nuno Trigueiros e Diogo Carvalho começaram a explorar as suas personalidades mais inventivas. Tristany, com o pai ligado à música, e Nuno Trigueiros, que tem na mãe uma apaixonada por pintura, acabaram por seguir os passos da família. Diogo Carvalho, por seu turno, despertou um interesse por cinema enquanto esteve emigrado em França. Desses processos de descoberta o que permanece intocável entre todos é uma fiel postura do-it-yourself. “Este coletivo é prova viva de que a faculdade é bullshit“, afirma Tristany. “Não tiro o mérito [de estudar na faculdade], mas o Nuno é o melhor designer que conheço, o Diogo é o gajo mais fodido em vídeos e os estudos de ambos foi a street, a experiência de vida, a aprendizagem com os amigos.”

O momento decisivo para que levassem mais a sério as ideias que estavam a cozinhar surgiu após a morte do amigo Marco Boto, tropa que fazia a ronda à zona com o grupo e que desde cedo os fez acreditar nos projectos que tinham no papel. “Quando o Marco faleceu, sentimos um boost para criarmos, para irmos para a frente com os nossos projectos, não ficarmos parados,” recorda Diogo Carvalho.

Os planos de futuro são nesta altura apenas esboços, mas o coletivo não esconde a ambição de um dia chegar ao pequeno ecrã ou à grande tela do cinema, seja com produções documentais ou ficcionadas. Por agora, os pés estão bem assentes no asfalto. Meia Riba Kalxa é o episódio que se segue. Cá estaremos para contar o resto da história.

Vocês sentem que têm as plataformas e apoios necessários para vingarem enquanto artistas independentes – e em particular enquanto artistas da Linha de Sintra?

João ‘Tristany’: Na LS, em termos de autarquia, [a falta de apoio] tem muito impacto. Não temos quaisquer estímulos, tivemos de ir à procura deles. Se não fosse uma professora nossa de Design Gráfico, eu hoje não sei o que faria. Ela não queria saber do sistema, punha-nos a ver filmes, a desenhar, levava-nos a museus, comprava-nos Poscas. Era mesmo fora da caixa e incentivava-nos sempre.

Não é por seres da LS que vais deixar de ser artista, até te podem dar mais mérito. Mas é fodido obteres inputs para acreditares [que podes ser um artista].

Diogo Carvalho: Há muito pouca ajuda do Estado e a que há vai desaparecendo à medida que sais de Lisboa.

“Nós andamos de comboio, andamos pela rua, subimos aos prédios, giramos com rapazes. É por aí que descodificamos a vida na zona”

— João ‘Tristany’

Sei que entre vocês definem a vossa arte como ‘sintranagem’. Sentem que estão a criar uma cultura?

João ‘Tristany’: Não somos a criação de nada, somos uma consequência. Somos a continuação de algo [que já existe]; do trabalho dos rappers street, writers, poetas, de todas as mães.

Nuno Trigueiros: Sinto que estamos a documentar uma época com a nossa maneira de ver e criar. Vejo-nos como fazendo parte de um movimento que existe dentro de nós, algo fictício que cada vez é mais real.

Diogo Carvalho: Não me vejo como um outsider, alguém que veio criar algo que não existe. O que tento fazer é pegar no que há e transformá-lo à minha maneira. Não sei se é uma cultura nova que estou a criar com toda a gente com quem trabalho, mas é qualquer coisa de novo. Isto é mais do que o mundo artístico. É o que vemos e vivemos.