Um olhar doloroso sobre a tragédia de Alcindo Monteiro e o racismo em Portugal

Frames retirados de “Alcindo”

Alcindo” é um documentário do antropólogo e realizador Miguel Dores. É pesado e muito bom e merece ser visto, escutado e debatido. Muitas vezes.

O filme centra-se na tragédia de 10 de Junho de 1995, no Bairro Alto, em Lisboa, quando Alcindo Monteiro foi brutalmente espancado até à morte por um grupo de neonazis por ser negro. Através das memórias da família e do trauma que sobre ela se abateu, o documentário procura fazer sentido dos contextos históricos e institucionais que permitiram que aquele homicídio acontecesse e, sobretudo, se repetisse.

São muitas as vítimas mortais por racismo em Portugal relembradas em “Alcindo”. Enquanto decorria as filmagens, Bruno Candé foi morto por ter a pele escura e tal como sucedeu com Alcindo, o homicídio ocorreu num momento de particular manifestação de sentimentos xenófobos e nacionalistas na nossa sociedade. Naquele momento, com a história em pleno loop e a parecer-se demasiado com o passado, o que seria para Miguel Dores “um documentário sobre uma memória já só podia ser um documento sobre o presente”. 

Na juventude, Miguel Dores fez parte do movimento punk anti-racista, onde o nome Alcindo Monteiro nunca foi esquecido. Natural da Amadora, Miguel viveu cinco anos no Brasil, onde trabalhou com um coletivo audiovisual em projectos ligados à discriminação racial, imigração e xenofobia. No regresso a Portugal dedicou-se ao mestrado em Antropologia e é da tese final que sai a matéria para “Alcindo”. Segue-se uma conversa com o realizador sobre a experiência de contar a história de Alcindo e o que ela nos diz sobre o racismo em Portugal no pós-25 de Abril.


Começamos pelo que te levou a fazer este filme: porque é que o assassínio de Alcindo Monteiro merecia ser contado num documentário?

Por volta de 2019 começamos a assistir de forma quase sistemática a higienizações fascistas em Portugal. O ano abre com uma grande entrevista ao Mário Machado num canal televisivo, depois com o Cláudio [Nuno] Cerejeira [condenado por agressões a três negros na noite em que Alcindo Monteiro foi assassinado], numa tentativa de voltar a trazer estas figuras para o debate público. Não é por acaso que nesse ano se cria o Movimento Zero e se elege André Ventura. Isto teve consequências no ano seguinte com os acontecimentos que fizeram com que este documentário fosse muito mais ligado ao presente.

Estás a falar da morte de Bruno Candé, por exemplo…

Sim, era a própria história a confirmar a necessidade de falar do caso Alcindo Monteiro como uma coisa do presente e não como uma memória. Desde logo pela ascensão do neo-populismo securitista que identifica inimigos públicos da comunidade nacional – seja pessoas negras, ciganas… Há um período longo em que as as vítimas mortais do racismo (pelo menos os casos mais conhecidos) são perpetradas pela instituição PSP, mas começamos a assistir novamente a este fenómeno do linchamento civil e pareceu-me que falar sobre o caso Alcindo Monteiro era uma forma de articular tudo isto.

Mas não esperava que o presente marcasse o guião do início ao fim. Isso aconteceu porque nós iniciamos as filmagens e de repente começam a acontecer imensas coisas que nos obrigam a trabalhar este conteúdo a partir de ritualizações da memória. Alcindo Monteiro começou a ser muito evocado pela sociedade civil nos últimos tempos, por exemplo, na homenagem da cidade [de Lisboa] que aconteceu durante as gravações. Não é que esta represente um maior interesse institucional em preservar e evocar esta memória como memória de luta, mas sim uma tentativa de resposta institucional a uma presença que era relembrada a cada nova manifestação, em cada momento que surgia mais uma situação de racismo… O presente e a sociedade portuguesa foram trabalhando esta memória e isso obrigou-me a vir mais para o presente.

Conta-nos como foi a primeira conversa com a família de Alcindo Monteiro sobre a tua intenção de fazer um filme sobre ele.

A primeira conversa foi por intermédio de um amigo, o Pedro Santarém, um militante anti-racista que também é amigo da família. Quando ele contacta a Luísa (irmã de Alcindo Monteiro), que foi a primeira pessoa da família com quem falei, há um silêncio ao telefone e depois ele diz: “já sabes do que venho falar”. E ela responde: “sim, nunca acaba”.

Essa resposta tem uma carga emocional fortíssima…

Há um reconhecimento da família de que isto é um tema que a sociedade não fechou e que é preciso muitas vezes voltar a esta história. No primeiro dia que fomos gravar a casa da Luísa, lembro-me de ela ligar a um irmão para ele ir lá a casa falar connosco e ele deve ter perguntado porquê ou algo do género. E ela responde: “para que não volte a acontecer”. Ou seja, há uma consciência de que isto é um tema coletivo.

Nem consigo imaginar como deve ser difícil evocar esta memória. Como é que se descreve o estado de espírito da família quase 30 anos depois da tragédia?

Tenho muitas reticências em descrever pela família esta dor porque acho que é uma dor insondável. Não consigo observar da forma mais apurada, só a família o consegue fazer. Mas o Alcindo era caçula, o irmão mais novo da família, e era muito querido por todos. Ele inspirava muito carinho por ser esta figura terna, simpática, que gostava muito dos sobrinhos, de animais. Para a família foi um certo apagão e uma destruição muito forte. Havia muitos sobrinhos, muita gente mais nova, que era preciso segurar, resguardar e poupar. Então, acho que também há uma história de muitos silêncios, muitos sentimentos guardados, que surgiram quando eles viram o filme. Passar por este processo de exibição do filme, falar sobre ele… São tudo momentos de construção e de reelaboração de uma memória que ainda não está fechada.

“Há um reconhecimento da família de que isto é um tema que a sociedade não fechou e que é preciso muitas vezes voltar a esta história”

Imagino que eles fiquem um pouco na defensiva quando alguém de fora quer mexer com a memória daquela tragédia…

Eles não querem que as pessoas se aproveitem da dor familiar, mas sabem que é um tema que os transcende e que é preciso que todos nós falemos sobre ele. A minha forma de trabalhar com a família passava por explicar que era um filme para fazer com tempo, que até poderia não acontecer, que dependia da construção que nós conseguíssemos realizar com todos. Nós fomos filmando e conversando com a família de forma muito espaçada, porque isto é um conteúdo traumático, é uma morte que desafia o quadro moral da família, não é uma memória para estar sempre a ser activada perante outros. E assim fomos sedimentando uma relação mais sólida, também porque é uma família muito bem disposta, que enfrenta isto com muita coragem.

A família participou na edição do documentário ou só teve acesso a ele depois de fechado?

O documentário teve quatro cortes até ao final e ao longo desse processo fomos mostrando e discutindo com vários activistas, militantes, com a SOS Racismo e com a família do Alcindo. À família só mostrei numa fase mais póstuma, porque queria levar uma coisa mais sustentada para discutir com eles. No último corte, trouxeram críticas absolutamente válidas e que nos fizeram inclusive filmar com eles mais um ou dois dias. A crítica era que o filme se chama “Alcindo” e, por isso, precisava reconstruir a história dele, ter mais Alcindo no filme. Era necessário não isolá-lo, porque não é um caso isolado, mas não podia ser só um filme sobre racismo. Foi uma crítica muito importante para o corte final.

E qual foi a reacção à versão final?

Ainda não acabei de etnografar as reacções, é uma família muito numerosa. No geral, acho que há progressivamente uma concordância em relação à abordagem do documentário. Ao mesmo tempo, a partir do momento em que foram à estreia [no Cinema S. Jorge, em Lisboa], viram aquela homenagem e viram qual era o real motivo para estarmos ali, eles foram aproximando-se ainda mais de nós, inclusive as pessoas que durante o processo se quiseram manter mais afastadas. E é interessante que até hoje ainda estão a chegar-nos coisas. Há pouco tempo recebi um VHS que eles encontraram com imagens da família em 94. Há uma aproximação a partir de uma relação que se foi tornando cada vez mais de confiança.

Há quem diga que o homicídio de Alcindo Monteiro foi um momento de viragem na forma como os portugueses encaram o problema do racismo no nosso país…

Não diria que a sociedade portuguesa mudou substancialmente a sua forma de abordagem. Diria – e não fui o primeiro a dizê-lo – que foi um grande momento para o nascimento do movimento anti-racista politizado, contemporâneo, que a seguir ao linchamento no Bairro Alto teve a sua primeira grande acção de massas anti-racista em Portugal. É também um primeiro momento em que há uma presença massiva de pessoas negras num gesto político em Lisboa. Diria que só estes factos já mostram como foi determinante para o nascimento de uma nova agenda, mas não quer dizer que isso tenha mudado a forma como o Estado encara a questão.

“Há uma perversidade cada vez que o racismo acontece em que a única resposta é uma cortina de fumo lusotropical que não permite discutir nada”

Por falar em Estado, no documentário apresentas recortes de jornais e excertos de noticiários que mostram como o discurso oficial e institucional bem depois do 25 de Abril continuou a carregar na narrativa de que fomos uns colonizadores fixes e que ficámos todos irmãos. O facto de ainda se celebrar o 10 de Junho é sinal de que esse discurso, na verdade, não mudou?

À partida, parece-me que o 10 de Junho é uma data irregenerável, na medida em que já foi o dia da raça e serviu no final do fascismo para condecorar heróis da guerra colonial, para actualizar o espírito lusotropical, colonialista, etc.. Aquilo que acho importante salientar nessa questão é que há uma negação do que foi o lusotropicalismo e [a defesa de] esta ideia do colonialismo suave. Foi um discurso importado a sociólogos brasileiros – sobretudo Gilberto Freyre – que observavam a questão da mestiçagem brasileira na óptica da democracia racial. Esse discurso foi trazido para Portugal com um objectivo claro de manutenção das colónias em África, ressignificando o discurso colonial, aquela ideia de que Portugal não era mais este pequeno território, é um sentimento intercontinental, oceanos de amor… É a cola da ideia de que Portugal é um colonizador entrópico.

Há uma incompreensão e má fé tão profundas nisto que existe arquivo de quando Mário Soares foi a Pernambuco em representação do Estado nos anos 80 para cumprimentar Gilberto Freyre e congratulá-lo pela sua grande obra – que tal como foi abraçada pelo fascismo, também o foi pelos humanistas e democratas em Portugal. Há uma regeneração deste discurso em período pós-colonial, desde a resignificação do dia de Portugal à CPLP à Expo 98 à própria ideia de lusofonia. Há uma ressemantização desta tese de Salazar de que Portugal é que inventou o multirracialismo e por isso é prototipicamente anti-racista. Isto tem consequências gravíssimas para a capacidade da sociedade portuguesa em discutir os casos concretos de racismo, os crimes contra a humanidade que Portugal praticou em África, e também o caso Alcindo Monteiro.

Não é por acaso que faço um apanhado histórico das posições políticas à época, com todas as figuras do arco da governação a psicopatologizar estes jovens neo-nazis, dizendo que era um fenómeno individual, importado, que não tinha representatividade em Portugal, como se aqueles jovens não estivessem a reclamar que estão a defender Portugal. Há uma perversidade cada vez que o racismo acontece – seja nas suas expressões culturais, institucionais ou mais violentas – em que a única resposta é uma cortina de fumo lusotropical que não permite discutir nada. E como discurso despolitizador, vemos que favorece a construção e a sedimentação de desigualdades.

Conversámos com o realizador Miguel Dores sobre o filme que revisita o passado para nos falar do presente.

Há muito caminho a percorrer até confrontarmos e assumirmos, enquanto sociedade, o nosso passado violento e colonialista…

É um fenómeno social complexo. Portugal não é o único nesta construção mitificada sobre o seu passado; todas as potências coloniais têm os seus mitos sobre a sua superioridade. Em Portugal, há muita gente viva que teve uma acção militar em África, existe muita memória traumatizada, muita auto-amnistia, mesmo no seio das famílias. Isto é um fenómeno que contribui. Outro é o facto de o Estado se ter auto-amnistiado sobre o que fez em África. Não é por acaso que nenhum dos massacres portugueses em África foi julgado no Tribunal de Haia. Outra dimensão é que Portugal é uma economia periférica da Europa de algum modo estagnada e que encontra nesta revitalização do passado alguma cola para a narrativa da nação como algo grandioso. Todas estas características de Portugal fortalecem a incapacidade de discutir isto publicamente. Mas acho que é um enunciado largo, com várias questões estruturais associadas. Não diria que se deve só a estes factores.

Fala-nos um pouco da ligação entre claques de futebol e o movimento neonazi em Portugal, tal como mostras no filme.

Hoje, a sociedade e os próprios clubes de futebol estão mais atentos a isso. Na altura, a questão não era exclusiva a Portugal, era um movimento espalhado pela Europa ligado à viragem do nazismo para o neo-nazismo enquanto discurso e estrutura política. O neo-nazismo, ao ser mais identitário e feito de grupelhos, tem dificuldade (em Portugal como noutros países) em disputar os sindicatos, espaço de recrutamento muito utilizado pelo nazismo. Nesta altura, há uma viragem de discurso na extrema-direita, com os grupos ligados ao MAN (Movimento de Acção Nacional) a afirmar que o lusotropicalismo não é para eles, que têm de livrar as nações brancas da ameaça imigrante. Naquele momento, procuravam [recrutas] nas periferias, entre as pessoas que viviam o desemprego, a desindustrialização, e essa suposta ameaça imigrante, o que leva a essa aproximação da extrema-direita às bancadas com o objectivo de criar movimentações mais violentas e identitárias.

Outro aspecto no filme é o facto de conversares com General D e mostrares miúdos a rimarem nas ruas naquela altura. Isto significa que, para ti, a emergência do rap em Portugal foi importante para uma união coletiva contra o racismo?

Sim. O caso Alcindo Monteiro moveu, por exemplo, associações ligadas a sindicatos de imigrantes a ter uma pauta mais politizada de luta contra o Estado. Depois há outras associações sociais que pedem a demissão do Dias Loureiro [Ministro da Administração Interna]. Este movimento não é propriamente criado ali, foi pensado e preparado por uma [primeira] geração. Mas as gerações precedentes, com pessoas que nasceram aqui ou vieram para cá muito cedo, tinham outros desafios por verem que o estigma da cor da pele se alastrara para lá do período migratório. Mas por mais que organizações como a SOS Racismo, e outras, sejam importantes, nenhuma é tão importante quanto a dos próprios jovens que sofreram esta violência e que se começam a organizar, seja através da cultura [como o rap], de organizações políticas como a Plataforma Gueto… São estes os grandes protagonistas destas lutas e quem produz o conhecimento que nos permite perceber aquilo que está a acontecer.

Que perguntas é que o documentário te suscita agora que já o viste por diversas vezes?

Vezes a mais (risos). Já estive em muitas exibições com debate e é óbvio que há muitas questões que ainda ecoam em mim. Lembro-me agora de uma pessoa que foi ver o filme e me disse que tinha um irmão que foi morto pela polícia em 98. Estranhei a informação porque não me recordava de saber de alguém que tivesse sido morto pela polícia naquele ano. Perguntei-lhe o nome e de repente apercebi-me que este não está em nenhum dado oficial e, tanto quanto sei, não foi tornado público. O que tenho pensado é sobre o quanto de não-público existe nas histórias de violência racista. Acho que é um desafio historiográfico pesquisar e saber mais.

E como é que vês o documentário a contribuir para o debate sobre o racismo em Portugal e o crescimento da extrema-direita?

O nosso objectivo era fazer o melhor possível para colocar a sociedade a discutir este problema, ao mesmo tempo que resgatamos esta memória. Não acho que o filme tenha algum protagonismo na condução desse debate, esse é das organizações, mas procura contribuir a partir da produção cultural. O documentário não tem nenhum objectivo de dar voz; tem uma relação de admiração com as pessoas que entrevista, com quem trabalha, porque também são elas, de formas diferentes, o motor do debate para o qual tentamos contribuir.