Fotografias por Hugo Barros
Por vezes basta o último frame do rolo da velhinha máquina fotográfica da mãe para dar início a um longo namoro com a fotografia. “Foi algures em 2007, peguei na câmara que estava lá em casa e tirei uma foto à minha irmã mais nova,” recorda Hugo Barros sobre o primeiro contacto com a arte de congelar o tempo em imagens. Foi um registo sem truques, point-and-shoot, que permanece bem vivo na memória. Sem o saber, foi também o primeiro parágrafo numa relação que o levaria a documentar o mundo que o rodeia através da lente.
Mais de uma década volvida desde aquele primeiro disparo e Hugo Barros, 21 anos, continua a trilhar com firmeza do it yourself o seu próprio caminho. Em tempos recentes, demos com a sua assinatura ao lado das criações de outros artistas da periferia de Lisboa, como é o caso de Tristany e da crew Unidigrazz. Depois há que somar o canudo da licenciatura em Fotografia pelo Instituto Politécnico de Tomar, à distância de um par de disciplinas, e os projectos na primeira pessoa que revelam uma identidade visual singular. É exemplo a monografia e documentário 2610, ambos uma homenagem nostálgica e sem filtros ao bairro que o viu crescer: o Zambujal, em Alfragide.
A história por trás de 2610 é uma de reencontro com as raízes. Há uns anos, Hugo Barros mudou-se com a família para o Casal de São Brás, na Amadora, e desde então o contacto com o Zambujal passou de tempo inteiro a esporádico. Mais tarde, os estudos superiores, e consequente mudança para Tomar, acabaram por consumar uma longa separação física e temporal do bairro. Foi durante período que a saudade dos tempos de miúdo bateu mais forte.
“Quando entrei para a faculdade, senti que devia regressar à minha zona,” conta Hugo Barros em conversa via Zoom num final de tarde de Verão. “Achei que devia reviver os momentos que passei quando era mais novo e foi aí que me reencontrei com o pessoal que não via há imenso tempo.”
O regresso a casa deu corda ao projecto que retrata as gentes “e o talento” que Hugo promete existir neste bairro situado nas franjas da capital. Feito de registos a preto e branco e em formato analógico captados nos últimos três anos, 2610 é um documento raro do lado menos visível e íntimo do Zambujal, que exibe as diferentes facetas das gerações e comunidades que ali coabitam – das famílias mais antigas às mais recentes, realojadas após as demolições de outros bairros periféricos como o 6 de Maio na Amadora e o Bairro das Fontainhas em Benfica. Na sua dimensão autoral, Hugo explica que o projecto foi importante para a evolução da sua sensibilidade visual, enquanto que na dimensão pessoal permitiu encontrar novas formas de estreitar relações com os tropas da zona.
“2610 é muito mais que as minhas amizades; eu quis explorar o bairro e as pessoas que já lá viviam e outras novas”
“Antes mesmo de criar o projecto, eu já tirava fotos ao pessoal e ao fazê-lo sentia que estava a libertar-me na comunicação com certas pessoas. Em termos fotográficos, permitiu-me desenvolver uma melhor visão e daí decidi aprofundar a ligação com o bairro. 2610 é muito mais que as minhas amizades; eu quis explorar o bairro e as pessoas que já lá viviam e outras novas.”
Essa exploração do Zambujal teve como primeiro resultado um curto documentário realizado em conjunto com o coletivo PuffReczFilms. Divulgado há um ano, o filme é uma amálgama de acções e conversas entre diferentes habitantes; reflexões sobre sonhos e constrangimentos que aquelas comunidades encontram à medida que procuram elevar a sua condição social e individual.
“O documentário surgiu de uma vontade de revelar os problemas do dia-a-dia, mas também de mostrar o talento criado no bairro e que muitas vezes não é conhecido.”
Hugo acrescenta que o impulso para documentar o bairro advém de um sentimento de ausência de registos visuais de infância que ilustrem o período em que viveu no Zambujal. “Não tenho registos do meu crescimento da mesma forma que muitas pessoas que conheço têm, por exemplo em formato de vídeo” explica. “Ao ver os meus álbuns de família, encontro alguns registos fotográficos, mas nunca vi um vídeo meu. O objectivo é usar a fotografia e o vídeo para guardar memórias de coisas que possam vir a desaparecer.”
“Sentes que aprendes algo de novo sobre ti e a comunidade do Zambujal quando observas as tuas chapas,” pergunto.
“Sinto. O bairro está dentro de mim, nasci e cresci ali e ver as minhas imagens e as coisas que fiz com aquele pessoal faz-me sentir orgulhoso de ser um deles e de mostrar para fora quem cresceu e viveu comigo.”
“E houve muitas mudanças no bairro ao longo destes anos?”
“Não sinto muito isso. Eu gostava que mudasse, mas também não posso falar pelos meus amigos. Às vezes custa-me vê-los ali na zona 24 sobre 24. Eu sempre quis transmitir-lhes a mensagem de que podem fazer muito mais do que aquilo que o bairro oferece. Mas é difícil sair da zona de conforto. A minha mãe sempre me educou a explorar o que está fora do bairro. Sinto que há pessoas que não tiveram a mesma educação. Eles têm de se enfrentar a eles próprios e poucos conseguem fazer. Depois há os problemas sociais que também têm de enfrentar, como a discriminação.”
Hugo assume já ter passado por essa experiência de discriminação. Recorda certo Verão em que foi à procura de trabalho para colmatar as férias da faculdade. Entregou uns currículos e o mais longe que atingiu foi uma entrevista que, segundo conta, pouco avançou a partir do momento em que se depararam com um negro.
“Riscaram-me logo. Eu nunca tinha tido essa experiência, só tinha ouvido falar. E foi nesse momento que senti e compreendi o que o pessoal sente, a condição em que está. Fez-me aproximar deles e falar de outra forma, puxar o assunto para enfrentarmos os estigmas porque se ficamos calados, então continuará a acontecer.”
“A minha ideia é mostrar quem vive comigo e que eles não são o que se pinta deles”
Coincidente com a nossa conversa é a ressurgimento do movimento Black Lives Matter um pouco por todo o globo. Em Portugal, essa luta colectiva foi assinalada com manifestações em cidades como Lisboa e Porto, onde milhares, tal como Hugo preconiza, não ficaram calados e soltaram os gritos de alerta e justiça para as comunidades negras que residem num país onde as feridas raciais persistem abertas. No Zambujal, explica, esse activismo – esse enfrentar dos estigmas como mencionou – ainda acontece de forma tímida.
“No meu meio, sinto que se querem afastar [da luta anti-racista]. Eles têm a sua opinião, mas se exprimem a sua revolta de maneira diferente. Eu já passei por isso, ser mais reservado para com estes assuntos. Eu joguei à bola num clube onde era dos poucos negros da minha equipa e quando faziam piadinhas eu não conseguia expressar-me por estar em minoria, então ignorava. Mas agora já não dá mais, tenho de expressar o que realmente sinto, aquilo que eu e os meus pais passaram. É algo que nos ajuda a crescer e a desenvolver a nossa cabeça. Todos os dias me digo que se um dia estas situações deixarem de ser o que são, que eu esteja cá para ver. O meu receio é bazar e isto continuar na mesma.”
Reformular a narrativa e preconceitos em relação aos bairros da periferia de Lisboa é uma das mais fortes motivações de Hugo no momento em que saí de casa de câmara em punho. Representar o Zambujal, a complexidade das vidas que acontecem naquela zona, é uma responsabilidade que assume sem rodeios.
“Como fotógrafo, tenho a responsabilidade de mostrar às pessoas que não têm facilidade em aceder aos bairros que estes não são apenas os desacatos e violência que os media mostram ou as pessoas imaginam. No Zambujal habitam diferentes etnias e temos facilidade em conviver entre todos. Damo-nos bem e somos muito unidos.”
“Sempre quis introduzir outros amigos meus ao bairro, mostrar-lhes que as cenas não são como eles imaginam,” continua. “Nos últimos anos, consegui levar alguns deles e hoje ainda perguntam, quando é que vamos regressar, e isso deixa-me contente. Senti que consegui mudar a cabeça deles e a imagem negativa que têm dos bairros.”
A monografia 2610, no seu estado actual, é uma ideia em progresso – o protótipo de um trabalho mais vasto que será divulgado no momento certo – “Este é um primeiro teste, em breve haverá edições para partilhar com as pessoas”. Além disso, a arte de Hugo não se define apenas através da fotografia ou do documentário; também passa por experiências na produção de som e na realização de videoclipes. No fundo, é um tipo multidisciplinar, virtude de uma urgência em comunicar sem limitações e independentemente de formatos ou aparatos. O sonho é chegar um dia ao cinema, se possível sempre com o bairro do Zambujal como pano de fundo – e aponta como exemplo a omnipresença do antigo Bairro das Fontainhas na obra do realizador Pedro Costa.
“Só quero passar a mensagem de que há mais nos bairros da periferia do que se conhece; fazer com que as minhas obras possam chegar às pessoas para que entendam o que ali está representado por mim e outras pessoas. A minha ideia é mostrar quem vive comigo e que eles não são o que se pinta deles. No fundo, sou um rapaz do bairro que quer mostrar o bairro.”